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MORTE E VIDA SEVERINA

O poema Morte e Vida Severina, publicado em 1956 por João Cabral de Melo Neto, é uma das obras mais conhecidas da prolífica literatura nordestina dedicada ao drama dos retirantes da seca. O texto do autor pernambucano, antes reservado aos amantes das letras, ganhou em 2010 uma versão animada em 3D preto e branco. Dirigido por Afonso Serpa e realizado a partir dos desenhos originais do cartunista Miguel Falcão, o filme narra o percurso de Severino, que migra do sertão para o litoral em busca de uma vida melhor.

A animação em alto contraste, repleta de movimentos fluidos e com traços, riscados e rasuras que conferem textura, volume, luz e sombra ao desenho, emulando as ilustrações de cordel e o próprio teatro de sombras, atrai pelo absoluto encantamento. Autêntica, extrapola a simples tradução imagética do texto a partir de ideias criativas e de soluções poéticas, iluminando a já brilhante obra do escritor.


O filme torna-se ainda mais sensorial com a interpretação de atores nordestinos, que dão alma ao clássico do poeta, e também com a trilha de Lucas Santanna, Siba, Rica Amabis e Marcelo Jeneci, composta com sanfonas, chocalhos, violas e tambores melancólicos que ecoam a vastidão da caatinga sem se render aos clichês sonoros da região.


No audiovisual, assim como no denso livro do autor, Serevino (voz de Gero Camilo) foge da seca e da pobreza do sertão, rasgando o interior pernambucano até o Recife atrás de emprego. Seguindo em direção ao mar, contemplativo, passa por vilas grandes e pequenas...


...todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, todas formando um rosário de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila.*


O poema narrativo existencialista, marcado por um lirismo folclórico áspero e por rimas quase singelas, certas vezes cômicas, mas sempre críticas e lúcidas, denuncia o conflito agrário e a luta do sertanejo pelo seu quinhão. A disputa pela terra é tanto base do poema quanto herança histórico-cultural do Brasil contemporâneo, expressa na tragédia secular de um povo que sofre com falta de terra, comida, água e assistência.


Na crônica em verso de João Cabral de Melo Neto, que alterna monólogos e diálogos, Severino segue sua trajetória sob o sol escaldante e sobre o solo calcinado. Durante o percurso, procura trabalho enquanto encontra personagens ligados à simbologia da morte, como irmãos de almas, carpideiras e rezadeiras, que com ele analisam a vida sofrida no agreste.


— Muito bom dia, senhora, que nessa janela está; sabe dizer se é possível algum trabalho encontrar? — Trabalho aqui nunca falta a quem sabe trabalhar; o que fazia o compadre na sua terra de lá? — Pois fui sempre lavrador, lavrador de terra má; não há espécie de terra que eu não possa cultivar. — Isso aqui de nada adianta, pouco existe o que lavrar; mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá? *


Severino, que nunca aprendeu a rezar, explica suas habilidades à senhora. Porém, nenhuma delas serve à velha que vive de a morte ajudar, já que de toda a região é rezadora titular. Sem alternativa, o homem segue seu caminho. Ilustrando a aridez da vida migrante, elementos surreais e fantasmagóricos assombram o filme, como a vegetação em forma de gente a se lamentar ou a constante presença da morte, sempre à espreita sob a forma de boi em osso ou de urubu a voar. Assim, é emblemática a cena do enterro de um anônimo, na qual seu túmulo é a única terra que lhe é garantida – já que nenhuma outra é dada em vida, apenas em morte severina.


— Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. — É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. — Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. — É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. — É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. — É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca. *


Severino apressa o passo para chegar ao Recife, onde escuta a conversa de dois coveiros que falam sobre o incessante trabalho que lhes dão todos os retirantes que deixam o sertão para morrer na cidade:


- Gente sem instituto, gente de braços devolutos; são os que jamais usam luto e se enterram sem salvo-conduto. — É a gente dos enterros gratuitos e dos defuntos ininterruptos. — É a gente retirante que vem do Sertão de longe. — Desenrolam todo o barbante e chegam aqui na jante. — E que então, ao chegar, não têm mais o que esperar. — Não podem continuar pois têm pela frente o mar. — Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar. — E da maneira em que está não vão ter onde se enterrar. *


Ao final do poema, sem saber se é melhor morrer ou viver, Severino depara-se com o nascimento de uma criança que, apesar do futuro não promissor, simboliza o eterno embate entre vida e morte. Dessa forma, João Cabral de Melo Neto fecha um ciclo, invertendo o conceito sugerido no título de sua obra, no qual a morte aparece em primeiro lugar. Porém, apesar do indício de esperança apresentado pelo autor, a animação aposta mais alto na angústia, mostrando Severino em sua jornada incompleta a correr, correr e correr sobre a terra em direção a...


* Trechos do original de João Cabral de Melo Neto

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