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  • danilofantinel

CABRA MARCADO PARA MORRER

Um dos títulos mais conhecidos da longa cinematografia de Eduardo Coutinho é também um dos retratos mais atualizados do Brasil contemporâneo. Lançado em 1985, após ter suas filmagens interrompidas por 17 anos, entre a instauração do regime militar e o período anterior à abertura política, Cabra Marcado para Morrer apresentou parte da vida agreste e amarga da família do líder rural João Pedro Teixeira, morto em uma emboscada na Paraíba em 1962. Se o recorte temporal parece distante, o teor do filme segue presente no cotidiano brasileiro: a opressão e a injustiça que se abatem sobre comunidades humildes na questão da terra ainda são vergonhosamente constantes no cenário nacional.


Coutinho e sua equipe percorreram o Nordeste no mesmo ano de 1962 com a UNE Volante, uma caravana da União Nacional dos Estudantes que promovia o debate sobre a reforma estudantil. Ao chegar ao Estado paraibano, o grupo tomou conhecimento do assassinato de João Pedro, 44 anos, líder da Liga Camponesa de Sapé, executado com três tiros de fuzil em uma rodovia quando seguia para casa levando consigo livros para seus 11 filhos. No dia seguinte à chegada da equipe, realizou-se em Sapé um comício contra o crime. A mulher de João, Elizabeth Teixeira, 37, compareceu com seis das suas crianças agora órfãs de pai.


O assassinato abalou não apenas a comunidade local, mas também o cineasta, que decidiu filmar a vida de João e de Elizabeth a partir da interpretação da viúva, de seus filhos, e de camponeses no local dos acontecimentos. As filmagens teriam início dois anos depois, mas naquele janeiro de 1964 um conflito ocorrido perto de Sapé envolvendo policiais militares e funcionários de uma usina contra trabalhadores rurais impediu os trabalhos. Onze pessoas morreram. A região acabou ocupada pela PM da Paraíba, impossibilitando a filmagem na cidade.


Coutinho transferiu as locações para o engenho Galiléia, em Pernambuco, onde havia surgido a primeira liga camponesa, em 1955. Com apenas 40% do roteiro filmado, a equipe foi obrigada a aceitar mais uma interrupção: era 1º de abril de 1964, instauração do golpe militar que sequestrou o governo brasileiro por 21 anos. Galiléia foi invadida pelos militares, e os principais líderes locais foram presos.


Alguns integrantes da equipe do diretor também foram detidos, mas a maioria conseguiu fugir para o Recife. Itens do equipamento foram apreendidos, incluindo negativos, copião e exemplares do roteiro. Porém, a maior parte das filmagens estava a salvo, pois já havia sido enviada ao Rio de Janeiro para revelação. Dois anos depois, Coutinho recuperou uma cópia do roteiro.

Em 1981, o documentarista decidiu retomar o projeto, porém naquele momento as dificuldades eram outras. Coutinho precisava reencontrar Elizabeth e seus filhos, dispersos pelo Brasil para fugir da repressão que se seguiu ao assassinato de João, para enfim poder contar suas histórias. Elizabeth havia seguido os passos do marido, sobressaindo-se em algumas manifestações e comícios que denunciavam o crime. Foi obrigada a fugir e a trocar de identidade para não ser morta.


Ao longo de suas quase duas horas, Cabra Marcado para Morrer exibe uma pesquisa de primeira linha que resultou na localização da viúva e de seus filhos, muitos dos quais vivendo sem contato entre si e sem lembranças dos pais. O que os une são as sensações de não pertencimento e de desintegração familiar, e os sentimentos de saudade e tristeza, certas vezes atribuídos pelos personagens ao destino, mas na verdade reflexo direto da injustiça e do descaso típicos das sociedades desiguais.


O longa de Coutinho radiografa a vida de trabalhadores rurais explorados, oprimidos e desterrados, exibe as mentiras e os erros publicados pela imprensa local sobre o caso e relata a impunidade dos assassinos (dois policiais militares) e do mandante do crime contra João (o latifundiário Agnaldo Veloso Borges, suplente de deputado estadual que conseguiu a renúncia do titular do cargo e de outros quatro suplentes para assumir a vaga e escapar do inquérito).


Com uma montagem bem calculada para contar todos os detalhes de um intricado drama ocorrido em um canto esquecido do Brasil, o filme é ainda hoje uma aula magna sobre a realização cinematográfica documental em uma época em que o gênero não era tão popular quanto atualmente.


Ver Cabra Marcado para Morrer é reencontrar um passado brasileiro ainda presente em trágicos casos de conflito por terras como a execução do sindicalista e ambientalista Chico Mendes, morto no Acre em 1988, o massacre de 19 sem-terra em 1996 em Eldorado dos Carajás, no Pará, o assassinato da religiosa norte-americana Dorothy Stang no mesmo Estado em 2005, e o recente homicídio do promotor de Justiça Thiago Faria Soares ocorrido em Itaíba, Pernambuco, no último dia 14 de outubro.


Ao final do longa, Elizabeth resume em 1983 o sentimento corrente e expresso em maior ou menor grau por muitos dos que participaram das manifestações populares realizadas entre junho e julho passados nas principais cidades do país: “A luta não para. A mesma necessidade de 1964 está abraçada. Ela não fugiu nem um milímetro. A mesma necessidade está na fisionomia do operário, do homem do campo e dos estudantes. Enquanto se tem fome e salário de miséria tem que lutar. Quem não luta por melhoria?”.


O Brasil mudou muito nas últimas duas décadas, mas em certos aspectos parece o mesmo registrado por Coutinho no início dos anos 1960.


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