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Raízes do racismo estrutural: De Cabral a George Floyd e João Alberto

Atualizado: 29 de dez. de 2020

No dia 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, cidadão negro morador de Porto Alegre, foi espancado e assassinado por dois seguranças brancos da rede de supermercados Carrefour. A barbárie que tirou a vida de João causou sentimentos de tristeza, indignação e revolta ao mesmo tempo em que deu uma nova dimensão ao filme De Cabral a George Floyd - onde arde o fogo sagrado da liberdade¹, longa-metragem que abriu a primeira edição do festival Cinema Negro em Ação, no dia 20. Com o documentário, entendemos melhor como o caminho que começou com o explorador português passa por Floyd, assassinado por um policial branco em Minneapolis (EUA), em maio passado, e chega até João Alberto.

Personalidades em sentido horário: Silvio Luis de Almeida (foto: Boitempo), Djamila Ribeiro (foto: site oficial), Milton Santos (site oficial) e Angela Davis (Reprodução).


Os seis envolvidos na morte do brasileiro viraram réus por decisão do Tribunal de Justiça. Eles responderão por homicídio triplamente qualificado com dolo eventual (motivo torpe, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima). A denúncia do Ministério Público do Rio Grande do Sul inclui o racismo como forma da qualificação por motivo torpe.


Seria mesmo muito difícil desvincular este homicídio brutal do contexto de racismo estrutural que perdura no Brasil e que guarda relações evidentes com o passado escravagista do país. Pois são justamente as raízes de nossa nação hostil a negras e negros e também o florescimento de uma nova postura antirracista entre os séculos XX e XXI os temas principais do longa-metragem escrito e dirigido por Paulinho Sacramento.


Com uma narrativa fundamentada em pesquisa e em declarações de especialistas e de ativistas antirracismo nacionais e estrangeiros coletadas na web durante a pandemia de covid-19, o documentário expõe detalhes de um processo desumano que extraiu africanos de suas terras no continente-berço para trazê-los a esses tristes trópicos já na condição de escravos, como mercadoria. A melhor qualidade do filme, portanto, está na temática a que se propõe e na edição das informações e das entrevistas, bem como na montagem do filme como um todo, e não exatamente na estética das imagens audiovisuais ou na produção de material inédito para o longa.


Ao longo do doc, entrevistados explicam uma vez mais como agentes de um sistema político-econômico deplorável juntaram riquezas incalculáveis enquanto apagaram identidades e dizimaram culturas, fazendo de pessoas ferramentas, transformando individualidades em força de trabalho não remunerada, provocando violência física e psicológica por séculos.


De Cabral a George Floyd esclarece novamente o quanto a abolição da escravatura, em 1888, se apresentou como uma decisão imperial brasileira sem lastro em medidas de apoio, acolhimento ou incentivo aos escravos libertos. Estima-se que nesse período cerca de 700 mil homens e mulheres se tornaram livres sem liberdade de fato, sem cidadania e acesso a alimentos ou água, sem educação, saúde e emprego, sem condições de autodeterminação.


Com nosso passado de mais de 300 anos de opressão das etnias negras, cujo tratamento cruel encontra paralelo apenas naquele dispensado aos indígenas, se dissemina a consciência de que a nação brasileira contemporânea se constitui sobre as ruínas da sociedade escravocrata que definiu o Brasil Colônia e o Brasil Império. É desse histórico de barbáries que descendem inúmeras populações marginalizadas, culturas maculadas e matrizes religiosas interditadas. Também está aí a raiz do racismo estrutural que enrijece o país, mantendo contextos, práticas e situações mais ou menos como sempre foram.



Cientistas brasileiros como Silvio Luis de Almeida, entrevistado no filme, debruçam-se há anos sobre o tema. De forma geral, pesquisadores explicam que o racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira a ponto de, por um lado, colocar a população negra em diversas situações de vulnerabilidade e, por outro, permitir que populações de outras etnias, sobretudo de origem branca, se utilizem dos espaços de poder para reproduzir atitudes preconceituosas, condutas opressivas, interdições, cerceamentos e extermínios².


George Floyd, acima, e João Alberto

Silveira Freitas. Fotos: Reprodução.


O espectador atento e compreensivo às falas coletadas por De Cabral a George Floyd não terá dificuldade em se deparar com os alicerces e as dimensões desse racismo estrutural. Trata-se de uma construção multiforme cujas faces evidenciam os muitos aspectos do preconceito étnico, como o racismo individual, ou seja, aquele exercido por pessoas declaradamente racistas ou por quem reproduz práticas racistas sem perceber. Há também o racismo físico, que tem o corpo como alvo a ser atingido, castigado ou abatido; o racismo patrimonial, instalado nos limites da propriedade privada; o racismo psicológico, calcado no assédio moral; o racismo simbólico, interessado no cancelamento de práticas, saberes, culturas e crenças negras tidas como inferiores; e o racismo epistemológico, que busca silenciar ou desacreditar a ciência produzida por intelectuais negros. Por fim, o racismo institucional, definido pelo desrespeito, pela falta de assistência e pelo bloqueio de oportunidades a populações negras por parte dos Três Poderes que compõem o Estado nacional (bem como por suas forças de segurança e seu sistema carcerário, por suas precárias redes educacional e de saúde pública). Não ficam de fora desse contexto nocivo as estruturas empresariais, industriais, agrícolas, culturais e midiáticas, que tendem a reduzir a participação de negros e negras a espaços e funções subalternas.


Intercalando entrevistas com Silvio de Almeida, Milton Santos, Gilberto Gil, Djamila Ribeiro, Thula Pires, Benedita da Silva, Ivone Caetano, Mateus Aleluia, Grace Passô, Conceição Evaristo, Mano Brown, Leci Brandão, Zezé Motta, Sonia Guajajara e Ailton Krenak, entre outros, De Cabral a George Floyd demonstra que o Brasil, que exigiu tudo de populações escravizadas dando pouco ou nada em troca, tem uma dívida com as etnias negras em geral e com as comunidades quilombolas em particular. Parte dessa conta pode ser paga com políticas afirmativas e de reparação, que já foram bem mais fortes e decisivas no Brasil pré-Bolsonaro. Outra forma é garantindo espaço e amplificando as vozes dos sempre oprimidos.


Independentemente disso, Djamila acredita que a luta contra o racismo depende do entendimento de cada um enquanto sujeito potencialmente racista em um sistema certamente reprodutor do racismo. Já Milton Santos lembra que o brasileiro precisa desenvolver uma consciência nacional em favor da igualdade racial e social. Talvez por isso Sacramento tenha optado em inserir em seu filme trechos da animação Morte e Vida Severina, título de Afonso Serpa inspirado no poema de João Cabral de Melo Neto que expressa as mazelas de um povo necessitado de terra, alimentos e assistência.


No estímulo pela tomada de consciência, Sacramento recorre também a posicionamentos contundentes de ícones do já estabelecido movimento negro norte-americano. Angela Davis, Martin Luther King, Malcolm X, James Baldwin e Muhammad Ali surgem em momentos de brilho intenso, irradiando sobre nós desejos flamejantes da sagrada liberdade citada no título do filme.



Rodapé:


1 - O subtítulo do filme faz referência a trecho do artigo Emancipação, escrito pelo advogado autodidata Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882 http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/655-luiz-gama) e publicado pela Gazeta do Povo em 1º de dezembro de 1880. Ex-escravo alforriado aos 17 anos e autor de mais de 60 textos, Gama foi figura essencial no movimento abolicionista brasileiro, tendo utilizado leis vigentes para alforriar centenas de escravos no país.


2 - Em 2016, o relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens informou que cerca de 23 mil jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados todos os anos no Brasil. Em média, são 63 homicídios por dia, sendo um a cada 23 minutos (Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295). Em 2017, a ONU lançou a campanha Vidas Negras para alertar sobre violência contra esse segmento da juventude (Fontes: https://vidasnegras.nacoesunidas.org/ e http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573450-a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-e-morto-no-brasil-onu-lanca-campanha-vidas-negras-para-alertar-sobre-violencia). Já o Atlas da Violência divulgado em agosto de 2020 indica que a taxa de homicídios de negros no Brasil saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes entre 2008 e 2018, representando um aumento de 11,5% no período. A pesquisa aponta que, em média, cinco pessoas negras foram assassinadas por hora em 2018. (Fonte: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/27/assassinatos-de-negros-aumentam-115percent-em-dez-anos-e-de-nao-negros-caem-129percent-no-mesmo-periodo-diz-atlas-da-violencia.ghtml).






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