Um dos filmes mais aviltantes e revoltantes de 2022, o belga Megalomaniac teve duas sessões no XIX Fantaspoa. O longa-metragem de Karim Ouelhaj acompanha alguns dias intensos e macabros na vida dos irmãos Felix (Benjamin Ramon) e Martha (Éline Schumacher), residentes em um casarão antigo que pertencia a seu pai, o “Carniceiro de Mons”. Circunspeto, Felix apresenta uma calma além do normal, porém sua cautela esconde uma personalidade dominadora, imprevisível e assassina. Incapaz de agredir fisicamente sua irmã, Felix parece protegê-la, o que não significa que ela não seja alvo de duras críticas, repressão e terror fraterno. Faxineira sob constante assédio moral e sexual por parte dos colegas de trabalho, Martha os teme menos do que sua própria personalidade esquizofrênica e, certamente, muito menos do que o poder sobrenatural que habita a casa - e que exerce força sobre Felix.
Megalomaniac é muito duro. Sua história desconcertante, baseada em fatos reais, deixará qualquer espectador abalado, mas, provavelmente, terá maior impacto sobre as mulheres. É especialmente a elas que o serial killer Felix direciona toda sua fúria e descontrole. Com cenas de violência gráfica sanguinária, exibidas de forma bastante crua em uma montagem que muitas vezes impede a visão completa da cena, mas que exprime um horror demoníaco, Megalomaniac aponta para as origens diabólicas de todo o mal que consome os irmãos e suas vítimas. O longa, que trafega perigosamente no campo na misoginia, também dá espaço para fantasmas ou espíritos obsessores que assombram a residência em convívio com os moradores. Entretanto, essas figuras sobrenaturais são como personagens secundários, quase figurantes de cena, adereços estético-narrativos que não causam o menor pavor. O horror mesmo é protagonizado pelos humanos: Felix na primeira parte do filme, em sua jornada mortífera de psicótico-possuído; os colegas de Martha, também no segmento inicial do filme; e Martha na segunda parte, após engravidar devido aos estupros sofridos com o consentimento do chefe - algo que a desperta de sua apatia alienante para dar início a uma vingança mortal (tornada épica na grande atuação de Éline e Benjamin).
A trama, articuladora de muitos outros horrores que não cabem aqui, é realmente pesada, repulsiva. E triste. Por outro lado, o roteiro é excelente no dimensionamento dos personagens, na construção e no desenrolar da trama. Bem alinhavado, narra com imagens, sugere com silêncios e não se preocupa em explicar com palavras, cacoete comum entre filmes de horror comerciais.
A direção de arte e a fotografia impecáveis destacam com frequência uma luz branca difusa, crua e gélida, semelhante a dos dias nublados, que mal consegue iluminar a decoração imponente e decadente do local, muito menos as sombras da casa e a escuridão das almas. A pouca luz, então, revela muito sobre esse ambiente lúgubre e desesperador. A casa mesmo parece um morto-vivo, uma figura espectral repleta dos ambientes proibidos, sobrenaturais, conjurados, sobretudo o porão, âmbito dos fantasmas que habitam a construção e dos demônios que desconstroem a psique, a ética, a moral e o espírito.
Gaston Bachelard sublinha, em A Poética do Espaço, que o porão é “[...] o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas” e que emula “[...] a irracionalidade das profundezas”. Irracionalidade sim, pois as profundezas misteriosas de um mundo inferior sempre habitado pelos mortos, pelos desencarnados, pelos esquecidos e pelo demoníaco independem da racionalidade humana para existir e para exercer sua força negativa – seja ela simbólica ou sobrenatural. Os medos que moram na casa e que assediam os vivos sempre se amplificam no porão, como já havia destacado Carl Gustav Jung em L’Homme à Ia Découverte de Son Âme (O Homem na Descoberta de Sua Alma). Para Bachelard, o porão, lócus de escuridão tanto no dia quanto na noite, é como o inconsciente, o âmbito mais misterioso e inacessível da mente humana, jamais vinculado à consciência e à racionalidade. Portanto o medo do porão até pode ser um medo irracional, que surge nas profundezas do inconsciente, mas jamais será irreal, jamais desimportante. Na poética da casa, o porão é o espaço do mistério sobrenatural por excelência.
Mas os horrores de Megalomaniac, ainda que tenham origem na escuridão de mentes doentias e no sobrenatural do profundo porão, não se limitam a ele. Espalham-se pelo casarão antigo possuindo corpos, encerrando os vivos, extravasando para as ruas da cidade fílmica, transbordando pela telona para nos envolver em sua névoa repulsiva.
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