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UPURGA

Perder-se na floresta pode significar um encontro com antigos mistérios do mundo natural. É o que ocorre com os personagens de Upurga, suspense de Ugis Olte, produzido na Letônia, no qual habitantes da cidade decidem fazer um rafting no rio que dá nome ao filme, no interior do país, enquanto gravam um comercial de salsichas. A equipe indisciplinada quer produzir um vídeo ao estilo “reality show”, por isso se aventura arriscadamente na natureza, ignorando os alertas do guia Andrejs (Igors Selegovskis). Após desavenças, parte do grupo adentra a floresta entrando em contato com uma flor alucinógena que desabrocha naquele único período do ano. Intoxicados pela floração, as pessoas entram em uma psicodelia obscura marcada por ansiedade, loucura, pela umidade das águas, pela fecundidade da terra e pela sexualidade exacerbada de homens e, sobretudo, mulheres.



Lançado na Premiére Latino-Americana do Fantaspoa 2022, Upurga expõe o choque de experiências entre humanos desconectados da natureza e os segredos guardados pela mata - e revelados (nunca explicados) mediante contato com substâncias botânicas. Desse embate entre os dois pólos surge uma insana alquimia. Como resultado, temos situações-limite de uma busca involuntária, lisérgica, fria e úmida pelo êxtase místico em um bosque sombrio. No cinema, a temática dos amigos que se perdem na mata sempre resgata o tema da floresta maligna. Isso ocorre com Upurga, que por vezes também flerta com o subgênero cabin in the woods (ou cabin fever), mas o longa acaba sempre retomando seu trajeto pelo caminho autoral.


Acima, o protagonista Andrejs


Movido por antigos simbolismos universais em uma trama de ação e aflição, Upurga é dinamizado pelo arquétipo da Grande Mãe, identificado pelas mais diversas tradições mítico-religiosas como o próprio Planeta Terra, a própria natureza. Tipo primordial da essência que suporta a vida, a Grande Mãe é tanto a Terra que roda no cosmos levando todas as espécies consigo quanto a terra fecunda que faz germinar o broto, sustentando desde o musgo até a mais frondosa das árvores, dando suporte aos rios que riscam sua superfície e aos humanos que vivem sobre ela. É dessa terra mãe fecunda que o habitante do antropoceno está apartado. Quando a ela volta, o encontro pode ser selvagem. Não sendo essa mãe arquetípica totalmente bondosa, a terra que oferece a vida também impõe aos humanos os maiores desafios, desterros, desesperos e desilusões. Perigos de morte especialmente aos não iniciados.



Entorpecidos pelas qualidades alucinógenas daquela rara flor que foi tocada, cheirada e lambida, os publicitários que desafiam Upurga entram na mais assombrosa viagem de suas vidas em um percurso em que loucura, sexo e morte trilham caminhos que se cruzam. No simbolismo que rege o filme, assim como no próprio imaginário antropológico, a Grande Mãe arquetípica se alinha, naturalmente, ao arquétipo do feminino. São muitas as sequencias em que a fecundidade da terra sublinha a fecundidade das mulheres e seu furor místico-sexual, sobretudo nas cenas em que elas se misturam nuas à umidade da terra escura – uma terra que é fértil e acolhedora, receptáculo e sustento da vida, e que ao mesmo tempo é terra de descanso, do enterro, do repouso final pós-morte, sendo elemento continente dos despojos que vão se decompor com o tempo para recompor assim a própria fertilidade do solo. Portanto, terra, vida, feminino, fecundidade, sexualidade, morte e renascimento se unem em uma linhagem simbólica que nos remete a tempos remotos.



Na tentativa de salvar os desaparecidos, o guia Andrejs acaba tento que enfrentar um guarda florestal linha dura e moradores locais que podem ou não estar ligados com o sumiço do grupo. Para desvendar o caso, ele conta com a ajuda de um velho sábio que parou de falar após uma experiência de quase morte dentro das águas de um lago junto ao rio Upurga. Pois ao seguir pelos campos do imaginário, o filme alinha as águas à morte. Em diversos momentos vemos Andrejs e outros personagens desafiando justamente a água – e sofrendo as conseqüências disso. O caso mais grave é aquele que abre o filme e que causa um trauma indelével no protagonista: a morte por afogamento de uma menina de cujo corpo só vemos os cabelos submersos, ondulados pela correnteza.



Em seu famoso livro “A água e os sonhos”, Gaston Bachelard, após estudar a obra de autores como Edgar Allan Poe, Stéphane Mallarmé, Honoré de Balzac e Arthur Rimbaud, conclui que o simbolismo da água pode instaurar diversos “complexos poéticos”, como o “Complexo de Ofélia”, referindo-se à personagem criada por Shakespeare em Hamlet. Pelo “Complexo de Ofélia”, Bachelard procurou compreender a recorrência poética existente entre a água, a mulher atormentada, o suicídio (especialmente) e a morte (de uma forma geral). O filósofo entende que a água pérfida é “[...] o elemento melancólico por excelência (...), infelicidade dissolvida (...), elemento sofredor”, afinal, “[...] a imagem das lágrimas acudirá mil vezes ao pensamento para explicar a tristeza das águas” (BACHELARD 2013, p. 94). Na poética que une a morte e as águas, a imagem da cabeleira flutuante é das mais recorrentes – justamente como aquela vista na abertura do filme, quando o protagonista perde uma menina afogada em um rio.



No caso de Andrejs, são as águas e os líquidos que o colocam em contato com o misticismo da floresta, e não a flor. Primeiro, isso ocorre por meio da poção mágica oferecida pelo velho sábio emudecido, que lhe permite entrar em transe. Depois, ainda sob efeito alucinógeno, Andrejs mergulha nas águas profundas do mesmo laguinho experimentado anos antes pelo velho. Nesse poço de águas escuras, Andrejs também tem uma experiência de quase morte que lhe permite revelações.



Upurga é uma narrativa contemporânea visualmente espetacular e bastante autêntica sobre os deslocamentos entre os sujeitos da cidade e os mistérios do mundo natural, aos quais parece só haver acesso por meio da lisergia tóxica. Recorrendo a antigos simbolismos, os roteiristas Ugis Olte, Bojana Babic e Lucas Abrahão oferecem sentidos e sensações, mas se negam a dar explicações racionalizantes. O cinema agradece.


Referência bibliográfica


BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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