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  • danilofantinel

A NUVEM ROSA

Atualizado: 15 de jan. de 2022

Na estreia Iuli Gerbase em longa-metragem, uma misteriosa nuvem rosa se alastra pelo mundo causando a morte instantânea de inúmeras pessoas. Por longos anos, todos são obrigados a viver confinados nos locais em que se encontravam e com as pessoas com as quais estavam quando a nuvem surgiu. O isolamento imposto provoca ansiedade, alienação, depressão e desespero, deixando aflorar em cada um a sombra que habita o eu. A nuvem que chega pintando o mundo com tons pastéis vem mesmo para oprimir e assombrar, sobretudo mulheres livres e libertárias como Giovana (Renata de Lélis) que, no entanto, não cessam de buscar liberdade.



> CONTÉM SPOILERS


Giovana conheceu Yago (Eduardo Mendonça) em uma festa na noite anterior ao aparecimento da nuvem rosa. Ao amanhecer, são surpreendidos com ordens das autoridades para que todos se mantivessem em casa, fechados, sob risco de morte em caso de contato com o gás tóxico – algo próximo de O último suspiro (2018), de Daniel Roby. Entretanto, se o filme francês é uma ficção científica com muita ação, A nuvem rosa, escrito em 2017 e filmado em 2019, é um sensível drama que antecipa angústias semelhantes as que passamos na pandemia de Covid-19 (leia mais aqui e aqui).


Giovana está longe da mãe, com quem tem um relacionamento aparentemente distante, e também da irmã, que havia dormido na casa de uma amiga. Yago tem um pai idoso e doente, assistido por um enfermeiro. Separados dos seus familiares, Giovana e Yago se vêem em uma convivência forçada que se torna relacionamento de longo prazo e casamento até chegar à descendência com o nascimento de um bebê. Porém, não sendo uma criança a condição primordial para tornar família um agrupamento de pessoas, esse trio enfrentará grandes desafios dentro de uma confortável, mas triste residência.


Em seu estudo sobre a imaginação poética ligada ao espaço, Gaston Bachelard comenta que nossa casa é nosso canto no mundo, nosso primeiro cosmos, nosso universo imediato. Nossa casa nos enraíza, acolhe e protege. É no interior de casa que nosso próprio interior, nossa essência, emerge no cotidiano com mais transparência. Na casa, o eu descarta as personas do social, pois a casa é lócus do si-mesmo, do ser que sou. A casa torna-se lar quando nela a família nasce e a vida pulsa. Entretanto, apesar de todos os esforços dos personagens, dificilmente poderíamos chamar de lar a casa em que os até então desconhecidos Giovana e Yago se viram confinados, vindo a ter um bebê.

A protagonista, dona do imóvel, é uma web designer independente, desvinculada das convenções sociais que aprisionam as mulheres em determinados papéis. Livre, prefere experimentar o mundo a ter as experiências da maternidade. Carl Gustav Jung diria que o animus de Giovana, ou seja, o teor masculino de sua psique é bastante presente, sublinhando nela um maior interesse por autonomia, aventura, desenraizamento, sexo. Ao contrário, Yago demonstra ser mais sensível, empático, compreensivo. Sempre preocupado com o pai isolado e distante, com o recém-nascido e com Giovana, Yago parece ter sua ânima mais desenvolvida, portanto um teor psíquico feminino atuante. Ânima e animus são arquétipos inconscientes complementares do eu, atuando sobre a personalidade de forma natural.


O curioso nisso, e talvez a grande qualidade na construção dos personagens de Iuli, é o fato de que a nuvem rosa se forma para tornar turva a existência, deixando que a sombra que Jung diz habitar cada psique aflore em angústia, arroubos, desequilíbrios, tormentos. Torturas da mente como as sofridas por Sara (Kaya Rodrigues), amiga da protagonista que surge em video call ao lado de uma grande mancha escura – sua sombra psíquica. A sombra simboliza aspectos obscuros de personalidade não conscientizados, pois reprimidos pelo ego no inconsciente.


A sombra de Sara surge em cena semelhante a esta


Pois sombra também emana deste casal involuntário. Giovana, ainda que livre e independente, passa realmente a se preocupar com o estado de coisas no mundo, com familiares e amigos, com a vida do bebê em um futuro incerto. Giovana sofre desesperadamente pelas mudanças provocadas pela nuvem, primeiro olhando o mundo pelas janelas (arquitetônicas e eletrônicas) e depois se refugiando em um mundo de realidade virtual que lhe proporciona algum escape da tragédia. Por outro lado, Yago, apesar de sua boa vontade inicial para com os outros, começa a se mostrar insensível, alheio à desordem do mundo, conformado com a claustrofóbica situação contanto que esteja em um apartamento confortável, bem alimentado e entretido. Mas uma casa não se torna lar quando não há um sentido de família. O desconforto mútuo dos protagonistas torna-se palpável a ponto deles incorporarem novos personagens (personas?) em uma tentativa de reaproximação - como na cena em que música alta e laser verde na sala escura simulam uma festa. A tentativa também falha, levando o casal à separação.

A cena é bonita. Os pontos de luz verde no breu simulam um cosmos em desconstrução, um cosmos que se torna caos. O casal se separa, a criança fica entre os pais, e a casa que não é lar sofre também uma divisão. Giovana, abalada com a desordem da vida, fica no primeiro pavimento, espécie de térreo, sob influência das coisas do mundo até refugiar-se no virtual. Yago, distante da queda da civilização, fica no segundo andar, aéreo, distante das coisas do chão, da realidade. Nada mais será como antes entre os dois – exceto o confinamento e a presença da nuvem rosa, que se mantêm. Nesse contexto de intenso sofrimento e de grande mudança para todos, Giovana tomará a decisão mais importante de sua vida: seguir em busca de libertação.



Bela estréia de Iuli Gerbase em longa-metragem, a cineasta já assinou seis curtas, incluindo A Pedra (2019), no qual já trabalhava com neuroses, segredos e crises familiares em tensão crescente. Tecnicamente arrojado, A nuvem rosa tem uma fotografia indoors impecável, muito elegante, dialogando com planos gerais da cidade, bem abertos, celestes. Também é memorável o trabalho de luz/sombras e a paleta de cores cruas e pastéis dialogando com marrons, amarelos e tons de rosa. A montagem deixa a história fluir, valorizando personagens dimensionais e profundos. O desenho de som é cuidadoso, mas por vezes o áudio das vozes parece baixo, o que não destoa das introspecções e interioridades da trama.



A NUVEM ROSA


105min / 2k / Color / 2021


Pré-estreia dia 26 de agosto


Até dia 01 de setembro com sessões às 15h e 17h30min


CINE FAROL SANTANDER - Rua Sete de Setembro, 1028, Centro, Porto Alegre


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