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CONTOS DO AMANHÃ

Na extensa cinematografia brasileira, a ficção científica e o cinema fantástico geraram poucos filmes, estando mesmo nas bordas do segmento independente. São gêneros ainda mais periféricos que o horror, em expansão no país desde os anos 1970. Contos do amanhã tenta um novo padrão para filmes sci-fi nacionais ao alinhar uma trama imaginativa a efeitos visuais semelhantes aos de filmes gringos de grande orçamento. Mesmo longe das grandes somas, o roteirista, diretor e montador Pedro de Lima Marques demonstra ser possível realizar ficção científica no Brasil com modesto custo de produção (R$ 450 mil). Neste longa de estréia do cineasta, os efeitos especiais criados pelo estúdio Forno FX para a Bactéria Filmes são mesmo arrojados, criando um visual convincente para um planeta degradado daqui a mais de um século. Porém, este mundo do futuro, muito escuro, convulsionado e complexo não se revela totalmente em imagem audiovisual. Muito disso tudo fica apenas sugerido por narração oral. O roteiro se esforça, mas parece não dar conta deste amplo universo cheio de personagens, grupos adversários e subtramas nem sempre bem amarradas. Há uma abundância de detalhes literalmente explicados em cena, que poderiam ser atenuados ou limados, ao mesmo tempo em que há vácuos narrativos que dificultam a unidade do longa. Nesta contradição, há muita narração verbal para contar a história, mas faltam planos, cenas e sequencias para expor audiovisualmente a trama que se desenrola. Apesar de certas dificuldades, Contos do amanhã se inscreve como um dos filmes mais importantes já feitos no Rio Grande do Sul.



> ATENÇÃO: SPOILERS


Tendo fundado a Bactéria Filmes em 2008, Pedro vem a desenvolver trabalhos que o capacitaram a efetivar Contos do amanhã, idealizado anos antes. Formado em design, tornou-se artista de efeitos visuais e especialista em pós-produção. Com a Forno FX, ele elabora a identidade visual desta trama estabelecida em dois espaços-tempo. Em um deles, em 2165, rebeldes liderados por Zero sequestram uma garota chamada Michele Medeiros (Daiane Oliveira), provocando uma guerra civil na cidade-estado Porto 01, o último reduto humano em um Planeta Terra destruído pelas mudanças climáticas. Já em 1999, em Porto Alegre, o adolescente Jeferson (Bruno Barcelos) recebe misteriosos áudios do futuro. Os arquivos falam de violentas tempestades de chuva ácida que duram 90 anos, alertam sobre zonas radioativas, denunciam a fome, a crise hídrica e a morte exponencial dos biomas. Na cidade-estado murada, rebeldes querem se apossar do núcleo da base de dados que gerencia a estrutura local e a vida dos habitantes. Jeferson terá de intervir para resolver o problema no futuro. Permeando este enredo, uma miríade de personagens e de arcos secundários que não se fecham apropriadamente torna o conflito difuso. No filme, há três grupos disputando o poder: o Exército da Pacificação, detentor de Porto 01 e identificado como uma elite dogmático-autoritária beirando o fanatismo; os Demônios da Cidade Baixa (DCB), rebeldes liderados por Zero e interessados em dominar Porto 01; e o Movimento Revolucionário Vermelho (MRV), que quer libertar o povo do domínio estabelecido. Este último grupo, por exemplo, não parece desempenhar alguma função determinante na história. Então, temos em cena um conflito triangular em que uma das partes não se apresenta.


Com a trama correndo em dois momentos, um dos desafios da equipe era diversificar os ambientes. As ações ocorridas em 1999 apresentam um estudante às voltas com mãe, amigos e escola em um ambiente realista, com muita luz natural, paleta de cores aquecida e uma decupagem convencional que destaca planos fechados nos personagens. No futuro, os tons são azulados, frios e sombrios, há planos mais abertos que permitem variar a montagem, destacando o desespero humano em um mundo de alta tecnologia, mas destruído. Os efeitos visuais sublinham um mundo tecno-caótico no qual naves espaciais das elites contrastam com a precariedade dos oprimidos. Há fanatismo místico, aristocracia autoritária, controle social, rebeldes e a noção constante do simulacro, que aliena o protagonista de si mesmo e do mundo.


Para materializar em imagem uma Porto Alegre quase 150 anos no futuro foram necessários mais de 400 planos com efeitos visuais e um elenco com mais de 100 atores e figurantes selecionados em uma chamada pública que reuniu mais de 700 candidatos. É espantoso. As filmagens tiveram início em 2014 na capital, no litoral e na serra gaúcha. A montagem começou em 2016, com Alfredo Barros trabalhando ao lado de Pedro. A pós-produção durou dois anos e meio, até 2019. O esforço de produção de Dani Israel, Davi de Oliveira Pinheiro (Porto dos mortos, 2010) e Luciana Druzina foi de qualidade, sobretudo no que diz respeito a certas locações, aos aspectos técnicos do filme como um todo e às condições para a efetivação dos efeitos especiais aplicados sobre a trama no futuro. Porto 01, a Porto Alegre futurística, é apresentada como um centro de tecnologia avançada, ápice da evolução tecnológica, mas um local em perigo. No entanto, a gênese desta curiosa cidade-fortaleza não fica bem clara, mesmo ela sendo a última entre outras 15 que foram extintas. Pouco se vê e pouco se sabe sobre seu funcionamento, população, crises ou paradigmas, o que instiga a curiosidade.


Entretanto, apesar dos efeitos visuais arrojados e da contundente visão de futuro, Contos do amanhã apresenta uma concepção cinematográfica conservadora, muito mais fundamentada na narração explicativa do que na representação audiovisual da história, dos personagens e de suas ações pelos muitos elementos da linguagem audiovisual – como a própria imagem em movimento desvinculada da fala explicadora. A trama no futuro é emblemática nesse sentido. Em 1999, Jeferson escuta áudios gravados em 2165 e passa a imaginar o futuro narrado. Mas Jeferson imagina Michele, a narradora, contando sobre tudo naquele ano. Ele não imagina os atos e os fatos em si. Então, o filme exibe uma narradora contando sobre o caos climático no mundo, guerras, fome, mas quase nada disso se revela em som e imagem. Contos do amanhã depende da palavra falada de narradores que explicam a história ao espectador didaticamente, afastando-o de ações, imagens, sons ou silêncios que poderiam narrar audiovisualmente a trama sem ter vinculação direta com o signo verbal. Com um roteiro amplo, cheio de informações por vezes confusas ao primeiro olhar e à primeira escuta, oferecendo uma variedade de personagens, grupos adversários, temáticas (políticas, religiosas, ambientais, filosóficas) e subtramas (que pouco influenciam a história), os realizadores de Contos do amanhã optam por reduzir a sugestão do fílmico pela ação dos personagens, eliminando o próprio acontecimento cinematográfico. Acaba-se valorizando o discurso, a enunciação, aquilo dito para a ambientação do espectador no filme – e não exatamente aquilo a ser mostrado enquanto ação, enquanto imagem em movimento a ser experimentada pelas audiências. Carlos Gerbase apostou nisso no curta Deus ex-machina (1995) e no longa Bio (2017). O recurso exige atenção e imaginação do espectador, e muito menos investimento por parte dos realizadores – o que pode ser determinante para uma produção no difícil cenário brasileiro. O resultado, porém, nem sempre é adequado. Um filme será sempre mais instigante, provocando maior curiosidade sobre sua trama e personagens, quando a história narrada se desenrolar de forma fluída pela ação de protagonistas, antagonistas e coadjuvantes em cena. A ação dos sujeitos na diegese demanda mais do que longas falas explicativas sobre essa ação. Na medida do possível, a ação precisa acontecer, se dando a ver. O cinema de ação, aventura e entretenimento acontece melhor dessa forma, sobretudo em filmes de ficção científica.


O roteiro de Contos do amanhã, ainda que imaginativo, deixa algumas pontas soltas. Um caso sintomático é o da personagem Michele Medeiros, uma das poucas pessoas a ter acesso ao código-fonte do núcleo digital gerenciador de Porto 01 e a vida de seus habitantes. Ela aparentemente tem um peso importante neste mundo futuro, porém sua função nunca fica suficientemente demonstrada, sendo relegada a papel de narradora da trama que sofre um sequestro – fato que instaura uma guerra-civil. Porém seu rapto e libertação não são suficientemente contemplados. Paralelamente, é o sequestro de Bia (Duda Andreazza), colega de escola de Jeferson em 1999, que ganha destaque na trama, se resolvendo inclusive durante o clímax do longa – portanto, tendo peso narrativo na história. Ainda assim, não se apresenta conexão entre os dois sequestros, nem espelhamento ou contraposição narrativa entre ambos, de modo que essas duas informações colidem sem se complementar no filme. São dois sequestros importantes para a história que ganham tratamentos totalmente diferentes no filme, apontando para um desequilíbrio narrativo.


Jeferson também chama a atenção. O personagem é menos revolucionário e paradigmático do que normalmente seria em um filme como este. Jeferson precisa necessariamente ser um herói tradicional, como todos os outros? Certamente que não. Porém, vejamos: no filme, Jeferson escuta os arquivos de áudio, imagina intensamente o futuro e acaba transitando entre os dois momentos históricos tamanho seu envolvimento com o conflito. Apesar disso, não parece se importar muito com o misterioso material que tem em mãos. Suas raras ações para tentar elucidar as ciosas são frágeis. Paralelamente, o desaparecimento da amiga Bia o aflige, mas ele não consegue interferir no caso. Ele basicamente sofre a dor da perda em silêncio. E sua alienação do mundo se dá tanto em 1999 quanto em 2165. Em contato com Michele, Jeferson descobre seu papel e peso no conflito estabelecido. Ele percebe que não é um estudante vivendo em 1999, mas sim Fantasma, um espectro de consciência humana que habita certo inconsciente digital no núcleo gerenciador de Porto 01. Ainda que seja uma espécie de cérebro eletrônico, mainframe da tecnológica cidade-estado, Jeferson não tem (não tinha) consciência disso, vivendo a ilusão contínua de um prosaico 1999, ao qual voltou, por intermédio de Michele, após vencer a batalha contra Zero e os rebeldes. Consciência humana imersa em um inconsciente digital que foi convocada para lutar uma guerra inesperada, Jeferson acaba voltando ao torpor das profundezas para cumprir seu papel – o de sistema operacional de Porto 01, alienado de si mesmo. Portanto, Jeferson é um contrarrevolucionário, ativo na oposição ao grupo rebelde que quer tomar conta do sistema organizador da cidade-estado e controlador dos habitantes, o que romperia com as estruturas vigentes. Estimulado por Michele, guardiã do núcleo gerenciador de Porto 01, Jeferson se opõe ao levante rebelde. Ainda que o mito do escolhido, decorrente da imagem do salvador, seja a motivação simbólica mais nítida do personagem e do filme como um todo [obra com evidentes referências a Matrix (Lana Wachowski e Lilly Wachowski, 1999) e a um Neo que se opõe à matriz maquínica no já clássico do sci-fi], Jeferson se mostra mesmo um anti-Neo, um situacionista convocado à luta para manter tudo como está na estrutura e no cotidiano de Porto 01. Jeferson não irrompe quebrando a ordem estabelecida, pois trabalha para mantê-la. Jeferson não é um herói solar (DURAND, 2012), intempestivo, inconformado, pulsional, aéreo, ascensional, decisivo em seus trágicos rompantes. Ao contrário. Ele é um herói lunar, noturno, condescendente, apaziguado em seu 1999 e atuante no mundo de sombras do futuro caótico. Introspectivo, Jeferson é marcado tanto pela dor do sumiço da amiga Bia no simulacro de 1999 quanto pela própria alienação de si mesmo, finalmente conscientizada em 2165 – ainda que não o suficiente para marcar sua libertação. O protagonista é uma consciência sem autonomia, imersa em uma inconsciência digital que lhe mascara a realidade. Ele é uma consciência inconsciente reclusa no núcleo de dados da cidade-estado.


Ao final da trama, um acerto de contas apoteótico em nada deve às grandes aventuras estrangeiras, reforçando a impressão de tributo ao gênero sem reformulações do cânone. O filme basicamente assimila códigos do sci-fi estrangeiro, evitando trabalhar temáticas, paradigmas e questionamentos de fato nacionais. O aceno a clássicos do gênero são compreensíveis, porém sua mera reprodução celebratória sem uma problematização com perspectiva própria pode soar inócua. Nesse sentido, o filme se distancia de longas nacionais que orbitam a ficção científica como gênero, mas que a desconstroem, tornando-a outra coisa, caso dos inovadores Branco sai, preto fica (2014) e Carro rei (2021), ou mesmo de O homem do futuro (2011).


Apesar de algumas fragilidades, Contos do Amanhã se inscreve desde já entre os filmes mais importantes da historiografia do cinema gaúcho, pois pensa e realiza ficção científica em nível profissional apesar de todas as dificuldades do mercado brasileiro. Mas no fim das contas, o longa demonstra que o roteiro é mesmo um ponto nevrálgico para produções que se querem arrojadas.


O longa estreou nos cinemas brasileiros durante a semana da Ficção Científica Brasileira, em dezembro de 2021, ano em que o título já havia sido exibido em 12 países e 27 festivais, tendo recebido 15 prêmios internacionais: melhor filme de sci-fi por seis vezes, destaque na direção de fotografia em dois eventos, diversos prêmios técnicos de efeitos especiais e o de design de produção no Other Worlds Film Festival, em Austin, nos Estados Unidos. Entre citações a Metrópolis (Fritz Lang, 1927) e Blade Runner (Ridley Scott, 1982), Contos do Amanhã procura conquistar seu próprio público e espaço em um segmento do cinema fantástico que já conta com produções como Acquaria (Flávia Moraes, 2003), Área Q (Gerson Sanginitto, 2012) e Malasartes e o Duelo com a Morte (Paulo Morelli, 2017).

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