Desde as narrativas míticas do mundo arcaico, sobretudo nos mitos de individuação[1], as boas histórias passam pela efetiva construção de personagens e de suas tramas. São estas figuras e suas ações que promovem projeção e identificação[2] entre obra e público. Com a literalização do mito[3], a edificação de personagens e enredos chega à literatura e, posteriormente, ao cinema, consolidando assim o desenvolvimento de personagens cujos arcos dramáticos apresentam mudanças e transformações – por vezes levando-os a situações-limite que colocam em xeque a própria existência dos agentes da narrativa. Este é o caso de Mais pesado é o céu, filme de Petrus Cariry que encaminha seus protagonistas a um extremo quase insuportável.
> Contém spoilers
Perdidos no mundo, sem dinheiro, casa, água ou comida, Antônio (Matheus Nachtergaele) e Teresa (Ana Luiza Rios) não se conhecem. Se encontram por coincidência à beira do Açude Castanhão, formado pela represa do rio Jaguaribe, no Ceará, cuja construção, muitos anos antes, já havia expulsado os moradores da cidade de Jaguaribara, que viria a ser inundada, afogada no seio do sertão. Às margens do açude, perto da estrada, Teresa encontra um bebê abandonado em uma canoa sob o intenso sol nordestino. Ela o acolhe, tendo a oferecer apenas colo e conforto. A exposição de crianças ao ambiente natural (o abandono à própria sorte, ou à própria morte) é um tema mítico muito presente, tendo em Édipo e em Moisés duas de suas configurações mais conhecidas. A exposição da criança ao sol mortífero do filme, portanto, joga tintas trágicas sobre a narrativa e seus personagens, conferindo-lhes maior peso dramático, dimensionando a profundidade dos protagonistas e a dificuldade de seus desafios – como se verá ao longo da história.
Teresa está sem teto, sem rumo e com um bebê de colo. Antônio é um faz-tudo em decadência que, pressionado pelo desemprego em São Paulo, volta à terra natal sem saber ao certo para onde ir ou como se sustentar. Desapontado pela falta de tudo, embrutecido pela vida dolorida, é um cético que já não confia nos outros – ainda que dependa deles. Sozinhos, andando pela secura do sertão, Antônio, Teresa e o bebê lembram os retirantes Fabiano, Sinhá Vitória e sua prole no Vidas Secas de Graciliano Ramos (1938), mas especialmente estes personagens na visão cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos (1963). Na primeira sequencia daquele filme, o casal vaga pelo terreno inóspito em busca de pouso e alimento. Algo semelhante ocorre com Serevino em Morte e Vida Severina, publicado em 1956 por João Cabral de Melo Neto. Já no longa de Petrus Cariry, Antônio e Teresa se encontram por coincidência e se unem por conivência, um ajudando o outro na dureza da vida.
Sem recursos, dependem de ajuda para comer e para se deslocar no semiárido brasileiro. Sem norte na estrada, entre uma carona e outra, conseguem o apoio de uma mulher (Silvia Buarque) para passar uns dias em um casebre abandonado. Para conseguir alimento para o filho, Teresa se deixa ver nua no banheiro de um posto de gasolina, onde também tenta emprego. Sem sucesso, precisa se prostituir, tendo que enfrentar a companhia dos piores sujeitos, muitos deles agressivos. Aos poucos vai se tornando mais dura, seca, objetiva, e mais sofrida também. Frente à situação devastadora, Teresa vai se fragmentando, se entristecendo por um lado, se revoltando por outro. Na sua ausência, Antônio se torna o cuidador do bebê, por quem passa a nutrir carinho especial. Ele vai se sensibilizando, torna-se mais afetuoso, se condoendo da situação e protegendo a criança como pode. Apesar de seu desencanto geral, parece mais esperançoso. Nesta troca de papeis entre os adultos, é sintomática a furtiva cena de sexo entre os dois, na qual ela impõe o ritmo e domina a situação. A relação, porém, apenas afasta-os, provocando maior instabilidade entre ambos.
No roteiro assinado por Petrus, Firmino Holanda e Rosemberg Cariry, os protagonistas passam por drásticas transformações que os levam a uma situação–limite realmente extrema, irreparável e bastante forte, cuja violência gráfica final parece destoar do filme como um todo. Não que o desfecho tivesse que ser outro, mas a direção imprimiu uma contundência estético-narrativa que parece não sintonizar com o tom geral do filme – apesar da escalada de abusos e tragédias pelas quais passam os protagonistas ao longo da história. A espiral negativa imposta a Teresa e Antônio é uma queda livre brutal, remetendo a uma construção dramática solidificada pela grande literatura, como a de Graciliano, de João Cabral e de tantos outros gigantes que beberam da tragicidade vertida pela fonte mítica.
Com atuações inspiradas que realçam ainda mais o longa, cuja montagem torna a história envolvente e inescapável, e filmado com belíssima fotografia, incluindo luz e cores espetaculares, o longa corrobora a fala de apresentação feita por Nachtergaele no 51º Festival de Cinema de Gramado, citando Petrus Cariry como um poeta visual. De fato, a obra do cineasta é pura arte.
Mais Pesado é o Céu conquistou quatro Kikitos no evento, obtendo os importantes prêmios de melhor direção e melhor fotografia, para Petrus, de melhor montagem, para o cineasta em parceria com Firmino Holanda, além do prêmio especial do júri para a atriz Ana Luiza Rios.
[1] Também chamados de mitos “identitários" ou de "significação", como são os mitos de heróis (ELIADE, 2016; DUBOIS, 1998). [2] Edgar Morin (2014). [3] Jean-Jacques Wunenburger (2007).
Referências:
DUBOIS, Claude-Gilbert. Les modes de classification des mythes. In: J. THOMAS, (Org.), Introduction aux méthodologies de l’imaginaire (pp. 28-35). Paris: Ellipses, 1998.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016.
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica. São Paulo: É Realizações Editora, 2014.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
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