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  • danilofantinel

RETRATOS FANTASMAS

Atualizado: 26 de ago. de 2023


“Se queres ser universal, comece a pintar sua própria aldeia”, sugeriu Leon Tolstoi, autor de Guerra e Paz (1869) e de Anna Karenina (1877). Ainda que a antropologia descarte universalismos de qualquer tipo, “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, exibido na abertura do 51º Festival de Cinema de Gramado, de certa forma corrobora a proposta do escritor russo.


Neste documentário ensaístico, Kleber aborda grandes mudanças, modernizações questionáveis e degradações visíveis pelas quais passaram o apartamento onde morou desde jovem, a rua em que cresceu, o bairro em que viveu, o centro do Recife, pelo qual sempre nutriu um carinho especial, e a cidade como um todo, alvo de um mercado imobiliário sedento que reconfigura sem pena o horizonte urbano e praiano. Neste cenário remodelado, Kleber destaca a ascensão e a queda de salas de cinema de rua que reuniram milhões de pessoas ao longo de décadas para cultuar filmes de todos os tipos, épocas e origens. Kleber constata que muitos destes prédios estão abandonados ou se tornaram lojas e igrejas evangélicas, apontando assim para uma nítida troca de poder simbólico. Sai a contemplação do cinematográfico, entra o culto ao místico-religioso e a adoração ao consumo.


O incontrolável avanço imobiliário sobre a cidade foi visto em Som ao Redor e Aquarius. A ação nociva dos poderosos sobre populações abandonadas pelo poder público está narrado em Bacurau. No entanto, ao fim de Retratos Fantasmas, constata-se que o que se passou no Recife é algo semelhante ao que se passou em muitas grandes cidades brasileiras: o fechamento das salas de rua e o decorrente encerramento do hábito de ir ao cinema por populações humildes; um refluxo das paixões e das crenças no sociocultural e artístico em favor de uma aposta no político-religioso-corporativo; um descaso com as estruturas sociais, culturais e arquitetônicas do passado; um redesenho das paisagens e dos horizontes a ferro e fogo pelo mercado de imóveis; além de um descompasso entre estas novas estruturas de poder e os antigos anseios das pessoas por um bairro, uma cidade e uma vida mais cidadã, mais humana.


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Neste sentido, a sequencia de encerramento do filme é emblemática: Kleber trafega de Uber por ruas do Recife, cuja peculiaridade de sua face antiga definha frente ao atual povoamento das ruas por farmácias assépticas, frias, erguidas lado a lado no percurso de algumas quadras. Some a diversidade arquitetônica antiga e surge uma padronização de engenharia medicinal, branca, gelada, que promete higienizar, sanar. Na sociedade capitalista neoliberal, se sabe, adoece-se a população para medicá-la depois. Mas quem toma tanto remédio?


Na mesma sequencia, outro sintoma do tempo: o motorista do carro diz a Kleber que tem o poder da invisibilidade. Ele rapidamente se torna invisível, mas segue ali, dirigindo o carro. Metaforicamente, o motorista desaparece para demarcar que os prédios de cinema do Recife, assim como a parte antiga da cidade, também se tornaram invisíveis. Estão ali, mas reconfigurados como templos de comércio de bens e de consumo da fé. São fantasmas ali dispostos, acompanhando calados a passagem do tempo destruidor e de pessoas que mal lembram deles. Estas edificações surgem no filme em fotografias e imagens em movimento. São como fantasmagorias que trazem para o presente aquilo que é passado. São imagens que tornam presente uma ausência. Justamente como as fotos, os prédios mortos ou renascidos como lojas e igrejas eternizam em imagem aquilo que não é duradouro.


De fato, Kleber usa registros documentais e material de pesquisa para bem documentar seu ensaio cinematográfico. No entanto, é por meio de uma História Falada, metodologia adotada profissionalmente por sua mãe ao longo da vida, que o cineasta atinge seu objetivo: o de relatar suas lembranças e memórias mais antigas para falar sobre o mundo a partir de sua aldeia.

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