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CENTENAS DE CASTORES

Atualizado: 8 de mai. de 2023


Se o cinema é um ilusionista perito em reinventar o mundo, pessoas, estéticas e histórias, a animação eleva essa qualidade à enésima potência. Como na animação tudo pode, Centenas de castores dobra a aposta e apresenta uma louca história sobre pessoas, animais e ganância cheia de referências à comédia e aos desenhos animados. O detalhe é que o longa-metragem de Mike Cheslik faz isso a partir de uma narrativa audiovisual híbrida em termos de linguagem, misturando live action em preto e branco, comédia pastelão, fotografia arrojada, animação, colagens e generosas doses de gélida irreverência.


Situada em montanhas nevadas incrustadas de pinheiros, nos Estados Unidos, no século XIX, a trama sem diálogos envolve um protagonista-vilão (o ator e roteirista hiperativo Ryland Tews), produtor bêbado de aguardente de maçã que perde tudo em poucos segundos. Mesmo. No auge do inverno, ele fica sem casa, roupas e alimentos para se manter. Com um velho mercador, pai de uma bela e depravada filha encarregada de descarnar animais de caça enquanto faz picadinho de corações apaixonados, o protagonista descobre que pode trocar caça por utensílios. Entretanto, sem experiência de caçador, o sujeito sofrerá muito atrás de coelhos, guaxinins ou qualquer outro animal. E tudo piora quando ele descobre que sua felicidade custará a vida de pelo menos cem castores.


Centenas de castores celebra a comédia como um todo e o cinema silencioso cômico em particular, mas reverencia especialmente os desenhos animados, com destaque para as criações do Looney Tunes – as conhecidas animações de TV cheias de bichinhos fofos e terríveis, nas quais os vilões sofrem horrores nas mãos de heróis felpudos. Rodado na neve com temperaturas de até -18°C (como explicou Ryland na premiére latino-americana, no XIX Fantaspoa), a equipe do filme, liderada por Cheslik, compôs as cenas a partir da atuação de atores com figurino de época, com a participação de figurantes vestindo fantasias de pelúcia imitando animais e com trechos em animação e efeitos especiais inseridos na montagem e na pós-produção.

Além dos elementos artísticos, também se destaca a parte técnica do longa, vencedor do prêmio de melhores efeitos especiais do XIX Fantaspoa. A montagem arrojada valoriza não apenas a fluidez narrativa de um filme sem falas (mas com muito som ambiente, foley e sonoridades de interjeição), mas também sublinha a fenomenal fotografia de Quinn Hester. Parece ser a junção de centenas de story boards elaborados antes das filmagens (portanto, um pensamento elaborado sobre planos e enquadramentos a serem filmados) a uma estudada fotografia (que insere os personagens nas locações em, novamente, lindos planos e enquadramentos) a fórmula que permite não somente a aplicação de animação e de efeitos sobre o material captado, como a própria definição da estética visual do filme. Não é uma boa comparação, mas no aspecto da imagem, das trucagens e dos efeitos visuais/especiais, talvez alguns paralelos pudessem ser traçados com Sin City - A Cidade do Pecado (2005), de Frank Miller, Quentin Tarantino, Robert Rodriguez.


A história narrada é longa e, nela, piadas internas se repetem como rimas cinematográficas, ou seja, ações e gags que retornam constantemente reafirmando o tom da comédia a cada instante. Bons exemplos são as quedas do protagonista-vilão em buracos circulares no gelo (sumidouros existentes em diversos desenhos animados), as escorregadas dos personagens no gelo, os encontrões aleatórios entre eles, que apontam para a abobadice geral, ou ainda o cuspe escuro e pegajoso do sujeito que masca fumo como um condenado.


O cinéfilo perceberá referências nítidas à comédia do cinema silencioso, especialmente aos astros Buster Keaton, Harold Lloyd e, sobretudo, Charlie Chaplin – não na caracterização do protagonista como “The Tramp”, o Carlitos, mas em suas atitudes miméticas, em seu espírito pastelão, em seus gestos corporais e faciais, e em sua personalidade dual que migra sem fronteiras entre o ingênuo e o esperto. Os desenhos animados, de forma geral, são a grande inspiração do filme, desde a ampla gramática audiovisual cômica instaurada por Looney Tunes até referências mais discretas, como o apito de navio muito ouvido nas histórias do marinheiro fumante Popeye, que ecoa em Centenas de castores quando o protagonista compra um cachimbo.


Um ponto negativo do filme é sua metragem. É muito extenso sem necessidade, muitas vezes correndo em círculos antes de chegar à reta final. No entanto, Centenas de castores sai na frente em se tratando de autoria, apesar de milhares de citações.



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