Nas guerras marcadas por invasões, bombardeios, matança e êxodo, as fronteiras nacionais se tornam porosas, as linhas geográficas perdem seu traçado e as noções sobre ética, moral e humanidade se tornam difusas, por vezes se apagam. A vida ganha triste opacidade e a morte assume tons muito mais escuros do que em tempos de paz. O desequilíbrio das estruturas, o autoritarismo obtuso dos poderosos, a confusão dos sentidos e a destruição dos sujeitos tornam os cenários pouco nítidos, obscuros, mesmo borrados, parecidos com aqueles vistos na animação Josep, do cineasta Aurélien Froment, o Aurel.
Neste longa franco-belga-espanhol, conhecemos a história de Josep Bartolí i Guiu, pintor e cartunista que lutou na guerra civil espanhola, por meio das lembranças de Serge, um ex-policial francês que trabalhou em campos de refugiados para espanhóis na França. Idoso, Serge conta ao neto adolescente detalhes sobre fevereiro de 1939, quando Barcelona caiu nas mãos do ditador Francisco Franco, levando milhares de pessoas a fugirem para o país vizinho pouco antes da ocupação nazista do território francês. Detidos em áreas de controle, espanhóis republicanos, anarquistas e comunistas se misturam a pessoas comuns, todos a passar fome, sofrer com doenças e temer a morte pelas mãos de policiais franceses refratários à presença de estrangeiros.
Josep, à esquerda, e Serge, à direita. Fotos: Divulgação.
Doente, o velho narrador explica que conheceu o catalão Josep em uma dessas prisões a céu aberto. Artista libertário convicto, Josep busca tanto a liberação da Espanha quanto alguma pista sobre sua amada madrilenha, de quem se separou em um momento de fuga. Sem despertar suspeitas, Serge se torna amigo de Josep, dando-lhe papel e lápis para desenhar e algum apoio psicológico em meio à desilusão. O artista passa a registrar com traços dramáticos, nervosos e contundentes os horrores que testemunha, como o assassinato de um amigo espanhol pelas mãos de policiais franceses xenófobos (já aptos ao futuro colaboracionismo nazista). Josep consegue escapar do horror, tornando-se um artista reconhecido em muitos países e chegando a se relacionar afetivamente com Frida Kahlo. Antes de morrer, Serge dá ao neto um impactante retrato do espanhol assassinado no campo de refugiados. Anos depois, em homenagem ao avô e seu amigo, o rapaz reintegra a obra à coleção de Josep em uma cena emocionante.
Com roteiro primoroso de Jean-Louis Milesi, sublinhando luta político-militar pelo poder, autoritarismo, resistência, arte, amizade e morte, Aurel observa uma faceta menos conhecida das relações entre Espanha e França no período inicial da Segunda Guerra Mundial, conflito tenebroso cujos reflexos ainda incidem sobre os nossos dias. Para isso, o cineasta une um traço cru, seco e duro a uma paleta de cores marcada por tons pastéis, lilases, marrons, pretos e algum vermelho, por vezes borrados, incontroláveis. Configura assim uma obra de arte de alma realista capaz de exprimir narrativa e esteticamente a desumanização das pessoas, a desolação dos espaços e as desconstruções de mundo.
Josep, acima, Frida Kahlo, à esquerda, e Serge, à direita, em um mundo de cores.
Na paisagem desértica de um campo de refugiados com tendências fascistas, o que mais há é fome, dor e solidão. Mas assim como já disse Mircea Eliade (2002), Aurel demonstra que mesmo nos conflitos mais sangrentos e distópicos, como a Segunda Guerra, a amizade nasce, a arte floresce e as histórias não cessam de ser contadas, pois são criações essenciais do ser humano.
Referência:
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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