No início do século XIII, na região da atual Suíça, em uma comunidade subjugada pelo poder do senhorio das terras, uma jovem tão sensível quanto destemida torna-se uma habilidosa parteira. Porém, assim como todas as mulheres que lidam com os saberes antigos da humanidade, muito vinculados ao poder fértil do feminino e da natureza, Christine (Lilith Stangenberg) é vista por pessoas da comunidade como muito libertária e independente, uma solteirona meio pagã com algo de sagrada – afinal, é ela quem ajuda as mulheres a darem à luz nas péssimas condições do mundo medieval.
Ao fim da construção de um castelo, o senhorio determina que a comunidade transplante 100 árvores adultas do bosque para o caminho que leva ao prédio. Do contrário serão punidos. Um sujeito muito sombrio chega em um coche puxado a cavalos semelhante ao veículo sobrenatural visto em Nosferatu (1922). Ele oferece ajuda, dizendo que pode fazer o serviço rapidamente caso a comunidade aceite seu preço. Eles negam, mas diante das dificuldades, Christine decide aceitar secretamente em nome da aldeia.
Em um primeiro momento tudo parece correr bem, mas aos poucos as coisas começam a mudar. A situação e a paz entre as pessoas se degradam sob diversos aspectos, até que uma peste se abate sobre o local levando muitos à loucura e à morte. Os aldeões concluem que Christine, nome consagrado a Cristo, fez um pacto com o diabo. A ferida que ela carrega seria resultado do beijo maldito que selou o acordo entre os dois. Condenada por todos, detida e maltratada, Christine passará pelos piores castigos até conseguir derrotar seus inimigos, sejam eles humanos imorais ou o próprio Anjo Caído.
Inspirado em uma novela do escritor suíço Jeremias Gotthelf, lançada em 1842, A Aranha Negra (2022) tem uma história densa, uma produção caprichada, direção de arte cuidadosa e um elenco dedicado, sobretudo Stangenberg, que se entrega para interpretar essa curiosa protagonista, cujo espírito tem algo de Joana d'Arc. Ainda que bastante clássico em sua forma e narrativa, o que o torna um tanto comum, o filme de Markus Fischer acerta ao alinhar a dureza da terra à aspereza das pessoas, a frieza do mundo ao gelo das almas. Além disso, sublinha com nitidez o quanto o dogma religioso pode permear mentes fracas até formar tanto pessoas autoritárias quanto submissas.
No longa, cuja premiére latino-americana ocorreu no XIX Fantaspoa, a tensão é constante para todos que habitam o vilarejo, mas, sobretudo, para as mulheres vítimas de um rotineiro sistema de opressão e cerceamentos. Neste caso, filme e livro demonstram de forma alegórica que nem mesmo as mais determinadas, como Christine, escapam da punição dos homens quando elas não cumprem a expectativa masculina. E que são elas as primeiras a serem atacadas pelo poder do patriarcado e pelo fanatismo da fé.
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