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50º FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO - Mostra de Curtas

Atualizado: 31 de ago. de 2022

O Festival de Cinema de Gramado chegou aos 50 anos celebrando não só a persistência e a resistência cultural no recente percurso histórico brasileiro, mas também a diversidade temática, narrativa, simbólica e cultural de nossa cinematografia. Filmes e realizadores de diversas origens ganharam espaço, consolidaram seus trajetos ou deram seus primeiros passos na serra gaúcha.


Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto


O drama acreano Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, foi o grande vencedor do certame entre os longas-metragens nacionais. A lista completa de premiados está no site oficial do evento.


Abaixo, comento quase todos os filmes da 19ª Mostra de Curtas Gaúchos e também alguns filmes nacionais em curta-metragem que foram exibidos no primeiro final de semana do festival (12, 13 e 14 de agosto de 2022). De forma geral, os filmes abordam a natureza da imagem, ressaltam pautas identitárias, apontam para questões trabalhistas, sublinham o poder do feminino e reforçam um mundo plural no qual a diversidade étnica e sociocultural é marca ontológica.


> Contém spoilers

> Todas as fotos são de divulgação



CURTAS-METRAGENS BRASILEIROS


O Fim da Imagem (PR), de Gil Baroni

O primeiro curta-metragem apresentado pela programação do festival foi também um dos mais contundentes de todo o evento. O filme de Adriel Nizer e Gil Baroni aborda de forma peculiar e inventiva o bullying, prática humilhante responsável por fortes reações nas vítimas. Optando por closes e planos detalhe, como que aproximando o público dos personagens, o filme surpreende por, na verdade, nunca permitir uma relação mais clara entre a audiência e os protagonistas. Acompanhamos suas ações e entendemos que algo grave se passa, mas nunca sabemos exatamente o que está acontecendo nem como realmente eles se sentem. A atmosfera é pesada, entretanto os personagens agem concentrados, inabaláveis, impenetráveis. Após uma crise na escola, um menino e uma menina editam um vídeo, publicam nas mídias sociais, causam comoção e uma onda de ataques virtuais. Na sequência, tentam deletar tudo enquanto tomam a decisão mais importante e drástica de suas vidas. O filme dosa muito bem visualidade a certo “não exibir narrativo”, “não mostrar”. Nunca testemunhamos o ocorrido na escola, nunca vemos o vídeo editado, mas percebemos seus reflexos. Ao mesmo tempo em que o roteiro sugere muito, seus personagens falam pouco, instigando a curiosidade do espectador. Com montagem cuidadosa, reunindo em si o impacto de uma decupagem sonora ruidosa a enquadramentos claustrofóbicos, quase sempre dentro de um quarto ou junto à superfície de uma tela de computador, Baroni denuncia não só os conflitos nos bancos escolares como também as graves consequências dessa prática, o vazio das famílias e a própria incomunicabilidade entre as pessoas no mundo hiperconectado. O final, ainda que chocante, assume tom singelo devido à solução audiovisual apresentada. São muitas as qualidades de O Fim da Imagem. Perguntei a Baroni, durante debate sobre os curtas, o motivo do título do filme tendo em vista justamente o triunfo da imagem audiovisual em nosso mundo, em um cotidiano mediado por computadores e smartphones. O cineasta explicou que o título faz referência não só à tentativa dos meninos em apagar todas as imagens que haviam produzido como também se refere à própria noção de finalidade da imagem, de objetivo. Entender a natureza e a função da imagem, claro, são temas filosóficos. Ponto para O Fim da Imagem, vencedor do Kikito de melhor desenho de som na mostra de curta brasileiros (para Alexandre Rogoski). Veja o trailer:



Deus Não Deixa (RJ), de Marçal Vianna

Das muitas histórias impressionantes contadas em Gramado, a de Luis Miguel Bispo é das mais surpreendentes. Ela nos chega por meio da equipe de Marçal Vianna, que demonstra o quanto pode um documentário Sua busca por autoconhecimento trilhou um caminho inusitado. Após uma infância de incompreensão por parte de familiares, Miguel deixou aflorar Mika Sapequinha nos palcos e clubes noturnos fluminenses. Após namorar um rapaz por algum tempo, porém, raspou os cabelos, aposentou os figurinos e passou a se dedicar aos cultos evangélicos. Cantor gospel, ex-frentista, Miguel conserva amigos e amigas, ainda conversa com o ex, mas não se considera mais gay. Pelo menos na maioria das vezes. Quando questionado mais objetivamente, lacunas e reticências no ar podem indicar dúvida. Enquanto expectadores resta-nos apenas acompanhar trechos de sua jornada por meio do material captado por Gustavo Pessoa e Marçal Vianna, a quem Miguel confessou alguns de seus mais íntimos assuntos.


Último Domingo (RJ), de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão

Belíssimo em preto e branco, distinto em sua fotografia, nos enquadramentos, discurso e diálogos, Último Domingo desponta no horizonte como um dos mais poéticos e simbólicos curtas dos 50 anos de Gramado juntamente com Mora, de Sissi Betina Venturin. Os dois abordam a potência do feminino. Em Último Domingo, o roteirista Renan Barbosa Brandão se inspira em trecho de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, para abordar a potência do feminino frente ao antigo e condenável domínio dos homens sobre as mulheres. Assim como no livro, o curta reflete o aparecimento do Anjo da Anunciação, que surge para Maria (Jéssica Ellen) no dia em que ela e José concebem Jesus. No livro, essa figura surge na forma de um mendigo. No filme, é um jovem pedinte que bate à porta de Maria em busca de comida. Na parte externa da casa, Maria lhe oferece alimento em uma cuia. Antes de lhe retornar a vasilha e partir, o homem coloca terra dentro do objeto enquanto profere palavras misteriosas, em tom sagrado. Grávida, protegida do sol forte pelo telhado da morada, Maria observa o rapaz partir. No interior da gamela, Maria percebe uma terra muito escura, brilhante e misteriosa. Maria decide conservar a terra e o utensílio, afirmando ao marido que aquilo é assunto de mulher. Sob desconfiança de José e dos outros homens, sobretudo os anciãos, Maria passa a ser questionada coletivamente sobre o estranho visitante e sobre seus novos hábitos ligados ao brilho da terra escura. Inquirida, é tornada suspeita de ser feiticeira, perigosa, capaz de manipular energias ruins. Incrédula com a situação imposta por José, Maria se vê isolada, acuada em sua própria casa, em seu local de proteção. Mas Maria escapa à opressão, criando seu filho em outro local, onde o feminino é livre para ser e a terra é fértil para gerar. No simbolismo que energiza o imaginário humano, o feminino, a mulher, o útero úmido, a interioridade do corpo e a fertilidade materna convergem em sentido com a terra fértil, escura e úmida, com a natureza mãe, com o poder do fecundo, do seminal, da geração e da criação. É por isso que o arquétipo da Grande Mãe está diretamente ligado ao planeta Terra, à natureza abundante, enquanto o arquétipo do feminino se liga não só à mulher, mas também à fecundidade geradora de vida. No filme de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão, pelo menos do ponto de vista das imagens simbólicas que inspiram a narrativa, a terra fértil, escura e brilhosa com que Maria foi presenteada se equipara à própria fecundidade feminina da personagem grávida. É por isso que Maria diz a um dos inquisidores que estavam a condenar a figura da mulher que ele deveria agradecer à mãe que lhe colocou no mundo. Último Domingo ganhou os prêmios de melhor atriz (Jéssica Ellen), melhor fotografia (Fernando Macedo) e melhor direção de arte (Joana Claude) na mostra de curtas-metragens brasileiros.



Ímã de geladeira (SE), de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo

O inventivo roteiro de Carolen Meneses surge como um dos pontos altos entre os curtas. Com pequeno orçamento e alto desempenho, Carolen e Sidjonathas Araújo entregam uma pequena joia fantástica que coloca em perspectiva o racismo estrutural e o capitalismo consumidor de corpos e almas. Quando um casal de costureiros precisa comprar uma geladeira nova, eles encontram um eletrodoméstico usado em uma pequena loja. Recentemente, porém, o aparelho havia abduzido um garoto e um idoso, ambos negros. Agora, instalado na casa dos protagonistas, a máquina poderá fazer novas vítima. Descrita assim a trama parece mesmo risível, entretanto o filme se resolve em um suspense com traços sobrenaturais que, como os bons títulos fantásticos, acaba apresentando um subtexto crítico aos contextos do cotidiano. Ou seria mera coincidência que a geladeira, um dos ícones máximos do sonho capitalista desde os anos 1950, consuma corpos humanos negros da periferia quando está vazia. Oca nas lojas ou esvaziada na casa empobrecida, a geladeira, espécie de monstro do capital, se alimenta de corpos. Eles lhe fornecem energia, combustível para o incessante consumo de carne humana para subsistência. Imã de Geladeira recebeu menção honrosa do júri da mostra de curtas-metragens brasileiros “por catapultar a urgente discussão sobre o racismo estrutural através do horror cósmico”. Veja o trailer:





O elemento tinta (SP), de Luiz Maudonnet e Iuri Salles

Único filme a ser diretamente crítico ao governo desastroso de Jair Bolsonaro, mas especialmente no que diz respeito ao combate da pandemia de Covid-19, O elemento tinta parte da trágica morte de um pixador em São Paulo, em decorrência do vírus SARS-CoV-2, para denunciar a omissão presidencial que resultou em mais de 680 mil mortes pela doença no Brasil. Luiz Maudonnet e Iuri Salles apresentam um filme incisivo, fluído, ágil e esteticamente arrojado, enquadrando a capital paulista como um ser noturno, obscuro e impessoal por onde vagam sujeitos inconformados. Dotado da urgência dos tempos, atormentado pelo espanto da morte e raivoso pela incompetência de autoridades ilegítimas, O elemento tinta é um documentário armado, instrumento de revide contra um presidente que desdenha do direito à vida. Com montagem em espiral crescente, registrando táticas e estratégias de ativismo sociocultural, o curta situa o pixo como voz das ruas, ação política que recorre à milenar prática de se gravar em paredes aquilo que se quer dizer em alto e bom som. No filme, um grupo de pixadores age sobre um prédio do Ministério da Saúde em São Paulo. Em uma, questionam: “Quem você perdeu na pandemia por R$ 1,00?”. A pergunta é uma referência ao esquema de corrupção que vinha sendo tramado no Ministério de Saúde aé ser denunciado ela Folha de S. Paulo. Conforme o jornal, Luiz Paulo Dominguetti Pereira, representante da vendedora de vacinas Davati Medical Supply, disse que o diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, cobrou a propina em um jantar no restaurante Vasto, no Brasília Shopping. Pereira disse que recebeu pedido de propina de US$ 1 por dose em troca de fechar contrato com o Ministério da Saúde. Dias foi indicado ao cargo pelo líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O caso foi parar na CPI da Covid. Já O elemento tinta obteve o Kikito de melhor montagem (Danilo Arenas e Luiz Maudonnet) e foi escolhido o melhor filme da mostra de curtas-metragens brasileiros segundo o Júri Popular. Veja o filme:




19ª MOSTRA DE CURTAS GAÚCHOS


Nós que fazemos girar (Porto Alegre), de Lucas Furtado

Durante os piores momentos da pandemia de covid-19 no Brasil, os entregadores de aplicativos se tornam mais atuantes no comércio e mais presentes no cotidiano de quem pôde ficar em casa. O filme de Lucas Furtado traz histórias de pessoas que já trabalhavam com entregas ou que passaram a fazer este serviço com mais intensidade para complementar a renda familiar em período de crise. Nós que fazemos girar apresenta depoimentos de bikers, motoboys e motogirls colhidos em estúdio. Testemunhamos relatos de um entregador experiente, de uma ex-funcionária hospitalar que venceu concurso de beleza e se tornou líder de mulheres entregadoras, de um estudante de História que faz corridas para sobreviver e de um casal de namorados com deliciosas histórias de amor e dor, de sangue, suor e lágrimas. O curta denuncia a precariedade das relações trabalhistas entre a categoria e os aplicativos que hoje dominam o mercado. A narrativa sublinha a luta por melhores condições de trabalho, o amor pela moto e pelo motor, bem como o perigo dos acidentes de trânsito – tão comuns entre entregadores que vivem a vida zunindo pelas veias da cidade aberta. Então, ao final, Nós que fazemos girar convida os entrevistados a parar por um momento, a viver as ruas em modo de contemplação, estáticos, longe da ruidosa velocidade que tanto amam. O curta capta os entregadores em ruas e avenidas frente ao mesmo fundo das gravações em estúdio, reinserindo-os na cidade de modo inerte, num ritmo para eles bastante incomum.



Sinal de Alerta Lory F (Porto Alegre), de Fredericco Restori

O maior feito do filme de Fredericco Restori é ter atingido o objetivo a que se propõe: resgatar a selvagem, poética e devastadora roqueira Lory Finocchiardo, filha de família burguesa que desde cedo se rebelou contra uma sociedade careta e cínica. Baixista, cantora, compositora, produtora musical e desenhista, Lory F. enfrentou seus demônios com o poder de um vulcão. Junto com sua banda, inseriu uma pegada blues e uma postura punk no hard rock, experimentando riffs, grooves, linhas de baixo e entorpecentes. A vida da roqueira mudou completamente após o diagnóstico de HIV positivo no início dos anos 1990, quando a Aids ainda representava uma certeza de morte para o paciente. Lory sofreu preconceito, afastamentos e apagamentos por parte de amigos, parentes e mesmo da mídia. Seu show Sinal de Alerta foi uma ação de tomada de consciência coletiva. Sua morte, em 11 de agosto de 1993, causou comoção. Dentre todos os depoimentos colhidos por Restori, incluindo os da irmã, a atriz Deborah Finocchiardo, da produtora Cida Pimentel e dos músicos Castor Daudt e King Jim, são os do filho de Lory, Ricardo Finocchiardo Bozoni, os mais tocantes, cheios de memórias e lembranças. Com roteiro e direção de fotografia de Natália Pimentel, Sinal de Alerta Lory F se sobressai pela arrojada montagem de Restori, que dosa informações em ritmo certeiro enquanto aplica uma quantidade surpreendente de cortes, filtros e efeitos visuais não apenas sobre os planos tortos e distorcidos que marcam as falas, mas também sobre o material de arquivo que ilustra o filme. A pós-produção dá frescor ao documentário, vencedor dos prêmios de melhor filme e de melhor montagem na Mostra Gaúcha de Curtas em Gramado. Veja o trailer:



Drapo A (Encantado), de Alix Georges e Henrique Lahude


Os roteiristas e diretores Alix Georges e Henrique Lahude apresentaram um dos curtas mais inventivos do 50º Festival de Cinema de Gramado. Rodado na cidade de Encantado, no Vale do Taquari, Drapo A foge a classificações fáceis e se levanta em nome de um cinema autoral. O curta une o espírito da Revolução Haitiana de 1804, que tornou o país caribenho a primeira república negra do mundo e a primeira nação ocidental a abolir a escravatura, à difícil condição dos imigrantes haitianos que hoje vivem no Rio Grade do Sul. Fragmentos do cotidiano contemporâneo, marcado pelas dificuldades de integração, de encontrar emprego e de ter um bom salário, surgem na tela com a presença quase mística de figuras do passado. No presente diegético, essas fantasmagorias inspiradoras testemunham os desafios de um povo que parece lutar sempre contra os mesmos desafios: subsistência, sobrevivência, existência. Ecos de uma potência ancestral que reverberam no agora, esses sujeitos do passado energizam os personagens do presente, levando-os rumo ao futuro. É o caso de Catherine Flon (interpretada por Clao Brigile), costureira responsável por fazer a primeira bandeira do país, em 18 de maio de 1803, e que no filme inspira os personagens. No idioma original do curta, o creole haitiano, “drapo a” significa “a bandeira”. Dinamizado por certo realismo mágico, Drapo A aplica ao drama do real encenado um simbólico poético, um alívio para os desafios cotidianos. O filme recebeu do Júri do Festival de Cinema de Gramado o prêmio de melhor produção executiva na Mostra Gaúcha de Curtas e também a menção honrosa tanto pelo desafio da realização quanto pela força cênica de Clao Brigile.



Possa Poder (Porto Alegre), de Victor Di Marco e Márcio Picoli

Um artista performático, uma encanadora e uma executiva vivem os percalços comuns aos excluídos socialmente em função de sua condição especial. Muitas vezes interditados em seus espaços de trabalho e atuação, Lucas, Luiza e Bia exorcizam demônios e praticam o descarrego juntos, unidas, em convergência. Ninguém solta a mão de ninguém. Em trio, são como as Graças gregas, as três irmãs míticas que espalham alegria e harmonia, que influenciam os trabalhos do espírito e as obras de arte. Acompanham Apolo, Atenas, Afrodite, Eros e Dioniso. Melhor companhia, não há. Com direção de fotografia de Bruno Polidoro, Possa Poder aproxima a câmera dos personagens dentro de um pequeno apartamento para destacar a união do trio, sua amizade incondicional, o convívio revigorante em um lar-refúgio que os arma para a luta altiva e constante pelo direito de existir, de habitar casas, ruas, palcos e escritórios, de dominar territórios simbólicos e materiais. Autor do filme ao lado de Márcio Picoli, com quem criou O que pode um corpo? (2020), Victor Di Marco recebeu o prêmio de melhor ator na Mostra Gaúcha de Curtas. Já Valéria Barcellos foi escolhida a melhor atriz dos curtas. Veja o trailer:




Olho por mim (Porto Alegre), de Marcos Contreras

A direção de fotografia de Edu Rubin define o tom íntimo e sutil estabelecido pelo roteiro de criação coletiva assinado em grande parte pelo elenco do filme. Sob direção de Marcos Contreras, o grupo apresenta fragmentos da vida de duas famílias e seus atravessamentos mútuos. Por meio de uma direção de arte que remete ao cotidiano da classe média branca, Contreras dirige atores cujos personagens vivem dramas aparentemente prosaicos, mas determinantes em suas vidas. Rubin capta os desafios existenciais desse viver em um preto e branco sóbrio, com super closes, planos detalhe de corpos, rostos e objetos, sempre trabalhando o foco e a falta de nitidez para traduzir os muitos sentimentos e as pequenas informações que nos chegam por meio de uma narrativa fragmentária, mas não exatamente lacunar. Aos poucos, o espectador passa o tempo exatamente como alguns personagens, olhando pela fechadura, observando os outros jogando games, evitando os estudos, embelezando os cabelos e as unhas, observando contas a pagar, pensando no trabalho, em festa ou em sexo. O curta demanda cumplicidade do espectador, pois nesta trama os não ditos também são eloquentes.



Apenas para registro (Porto Alegre), de Valentina Ritter Hickmann

No passado, Sérgio Hickmann se dedicou a registrar em vídeo muitos momentos em família. Sérgio captou trechos da vida familiar com a objetiva de sua câmera, mas sempre segundo a subjetividade de seu olhar e a intencionalidade de suas ações. Destacam-se a relação com a esposa e a primeira infância da filha, Valentina Ritter Hickmann, diretora e montadora do filme. Mais do que isso, se sobressaem as tentativas de Sérgio em entender o funcionamento da câmera de vídeo e em compreender o estatuto da imagem, justamente como fez, ainda que em nível acadêmico e com relação à fotografia, o conhecido teórico Vilém Flusser, autor de A Filosofia da Caixa Preta. No filme montado por Valetina, Sérgio buscou assimilar as funções e as possibilidades da documentação e da narrativa, desenvolvendo por conta própria seus conhecimentos sobre a imensa gramática da linguagem audiovisual. Ao extrapolar o cotidiano familiar mesclando nele o entendimento do pai sobre a imagem em movimento, Valentina ressignifica o material de arquivo para sublinhar nele não apenas o vídeo enquanto ferramenta de memória, mas também a câmera e a audiovisualidade como forma de pensamento. Apenas para registro foi eleito pelo Júri da Accirs o melhor curta-metragem gaúcho nos 50 anos do Festival de Cinema de Gramado.



Johann e os ímãs de geladeira (Porto Alegre), de Giordano Gio

A vida de Johann fica de ponta-cabeça depois que ele descobre que um misterioso rapaz vendia pelas ruas da cidade uma caixa com imãs de geladeira estampados com fotos suas. Espantado, sentindo-se perseguido e amaldiçoado, Johann passa por experiências assombrosas, especialmente aquela ocorrida em sua cozinha, envolvendo imãs, magnetismo, uma geladeira e a figura do Enforcado no tarô. Preso nesse arcano, como que atado ao incompreensível, Johann dependerá da própria intuição e sabedoria para encontrar uma saída para sua estagnação incapacitante, um escape qualquer pelo qual poderá cessar sua suspensão, atingir o apaziguamento e, assim, retomar o fluxo harmonioso da vida. De fato, Johann consegue se livrar do encadeamento de mistérios e maldições, mas da pior forma possível: repassando o carrego para seu amigo, Matias, que é orientado a seguir até determinado local, com a caixa de imãs, para um encontro enigmático e assustador. O andamento do curta, realizado sob dois dispositivos bastante claros (um mais realista, informativo e narrativo; outro mais simbólico, sugestivo e obscuro), sugere ao filme um movimento narrativo espiralado que permite o fluxo das energias entre as pessoas, os seres e as coisas. Trata-se do mesmo giro constante que coloca tudo em relação em um mundo que está em eterna mudança. Johann e os Ímãs de geladeira demonstra que interromper essa fluidez pode ser tão desestabilizador quanto direcioná-la deliberadamente. Veja o trailer:




Perfection (Gravataí), de Guilherme G. Pacheco

Um grafiteiro que é também biker de aplicativo enfrenta dificuldades com seu subemprego e com a falta de respeito no trabalho nesta curiosa trama cheia de ações cíclicas e de rupturas espaço-temporais. O flerte com o fantástico aumenta o tom crítico do filme, permitindo ao protagonista tomar soro fisiológico enquanto faz entregas a clientes. O recurso fílmico é uma denúncia dos cuidados que necessita uma das categorias que mais correram risco durante os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19. A mesma solução estético-narrativa que sublinha essa exaustão física dos entregadores, exauridos continuamente pelos aplicativos de alimentação, leva o personagem-artista a pintar suas obras com o próprio sangue. O curta destaca, portanto, que há quem praticamente entregue a própria vida não só à arte e ao fazer artístico, mas também ao mercado de trabalho. Mais contundente ainda é perceber como os roteiristas Guilherme G. Pacheco e Gerpes Jeison dos Santos arrematam seu protesto: o sangue com o qual se faz arte se assemelha à substância consumida pelo cliente de aplicativo que, sob o olhar apurado do espectador, se transforma no dono do APP que investe e vende a arte feita com o sangue dos entregadores. De forma corajosa, com narrativa inovadora e com uma direção de arte que respeita as diferenças entre o frio mundo do trabalho e o aquecido mundo das artes, Perfection sugere que grandes players da dita economia criativa digital sugam a energia de trabalhadores subempregados e transformam em grande arte a miséria de seus co-la-bo-ra-do-res – uma das palavras mais nefastas inventadas pelo marketing vazio do neoliberalismo hiperconectado. Veja o trailer:


Madrugada (Rio Grande, Pelotas), de Leonardo da Rosa e Gianluca Cozza


Se fosse interpretado como um documentário estrito, formal, fundamentado em estatutos importantes para autores como Fernão Pessoas Ramos* e Marcius Freire**, teríamos que avaliar Madrugada segundo itens como documentação, pesquisa, entrevistas, asserções sobre o mundo, limites da representação do outro, relação palavra/imagem ou palavra/texto, autoria, presença da câmera, encenação, etc. Entretanto, o documentário clássico (expositivo, reflexivo), que geralmente reúne alguns destes elementos, torna-se cada vez mais raro, sobretudo em festivais não especializados no formato. Multiplicam-se, assim, os documentários híbridos, os documentários em primeira pessoa, os poéticos, ensaísticos e performáticos, os docudramas, os mockumentaries e tantas outras vertentes. Leonardo da Rosa e Gianluca Cozza seguem seu próprio caminho, filmando o real aparentemente sem querer interferir sobre os acontecimentos. Desse ponto de vista, poderíamos pensar em Madrugada como um documentário observativo, segundo a definição de Bill Nichols***. Ou seja, a câmera e o documentarista registram o acontecimento, a experiência vivida, sem fazer inferências ou interferências, sem interagir com as pessoas e situações observadas. Esse tipo de filme teria a pretensão de não atuar sobre o real nem manipular aquilo que foi (está sendo) registrado, mas sim de exibir sons e imagens que narram. No entanto, a simples presença da câmera na locação, registrando a ação e as pessoas já altera a postura e a predisposição dos envolvidos, sobretudo sobre suas falas e posicionamentos. Isso já é o suficiente para atuar sobre “o real”. Da mesma forma, qualquer edição e montagem sobre o material captado joga camadas de subjetividade e intencionalidade sobre o filme. Desse modo, ainda que seja um doc observacional e desvinculado de tradicionais instrumentos documentarizantes (situar espaço-tempo, dar perspectiva histórica, apresentar participantes, contextualizar temáticas, mapear documentação, fazer asserções, etc), pois provavelmente estes recursos não interessam aos realizadores, Madrugada acaba mesmo interferindo sobre o real filmado – sem com isso detalhar informações ao espectador sobre o documentado. Sabemos que o curta acompanha um grupo de homens que invade trens de carga para desviar grãos para revenda. Em outras palavras, roubo de carga. Naturalmente, para resguardar os envolvidos não são divulgadas informações sobre o grupo. Ainda assim, o filme não leva ao espectador dados mais sólidos do que estes divulgados em sinopse, o que pode gerar dúvidas entre o público. Depende do espectador, portanto, satisfazer-se ou não com a narrativa audiovisual apresentada. Por outro lado, é curioso perceber como a bela direção de fotografia de Rebeca Francoff, o marcante desenho de som de Otávio Vassão e de Humberto Schumacher e a montagem de André Berzagui, responsável por lindas fusões e transições de imagens, levam o doc a transitar com desenvoltura entre o poético-ensaístico – se não pelo poder da palavra, pela força de sons e imagens. O longo travelling de um homem caminhando sobre o trem enquanto recolhe grãos, em um plano com grande profundidade de campo e marcado também pela luz peculiar e por sobreposições imagéticas, é uma das cenas mais marcantes da mostra de curtas gaúchos. O mesmo vale para as fusões de navios e de contêineres no Porto de Rio Grande, cuja edição faz aquela massa de equipamentos parecer uma muralha industrial intransponível entre a pobreza de quem rouba para sobreviver e a riqueza de quem exporta para lucrar.


* Mas afinal... o que é mesmo documentário? (2013)

** Documentário – Ética, estética e forma de representação (2011)

*** Introdução ao documentário (2016)


Veja o trailer:


Nação preta do Sul – O Curta (Porto Alegre), de Nando Ramoz e Gabriela Barenho

Foto: Ireno Jardim


O curta oriundo da minissérie Nação preta do Sul – pela valorização da cultura, promove um olhar renovado sobre o papel de homens e mulheres negros e negras no processo histórico que resultou na formação do Rio Grande do Sul. Reunindo trechos da narrativa seriada que percorreu sete cidades gaúchas, Nando Ramoz e Gabriela Barenho e seus entrevistados denunciam não somente o apagamento de pessoas negras ao longo do tempo, mas o próprio silenciamento gaúcho sobre a escravidão no estado. Destacam-se tanto o papel de pessoas escravizadas na estruturação das elites no passado quando o impacto contemporâneo de figuras como João Cândido, um marinheiro que viajou o mundo na época do presidente Nilo Peçanha e que tentou evitar a prática da chibatada na Marinha liderando um motim em quatro navios de guerra, na Baia da Guanabara, em 1910; Lupicínio Rodrigues, um dos mais reconhecidos cantores e compositores dedicados à dor do amor; Oliveira Silveira, o professor, pesquisador e ativista do Movimento Negro que idealizou o Dia Nacional da Consciência Negra; os sambistas Neri Caveira e Passarela Carlos Alberto Barcellos, o Roxo, que dá nome à passarela do samba no Sambódromo do Porto Seco, em Porto Alegre; e a jornalista Vera Cardoso. A minissérie Nação preta do Sul está online na íntegra (abaixo), mas é positivo que os segmentos mais importantes tenham sido reunidos em curta-metragem para que outros públicos tenham acesso. Veja a minissérie:




A diferença entre mongóis e mongolóides (Porto Alegre, Canoas), de Jonatas Rubert

Simplicidade pode ser uma boa palavra-chave para o curta do roteirista, diretor e montador Jonatas Rubert. Filme ensaio inteligente e emotivo, A diferença entre mongóis e mongolóides não se lança em argumentações mirabolantes para explicar a condição específica dos portadores da Síndrome de Down. Ao contrário, Rubert recorre à experiência com seu irmão e seu tio e a observações muito pessoais e curiosas sobre esse conjunto de características genéticas que circunscrevem os portadores a certos espaços e convívios, e não a outros. Por meio de colagens audiovisuais que misturam fotografias de família, ilustrações, material de imprensa ou enciclopédico, Rubert instaura uma narrativa caleidoscópica colocando em relação percepções equivocadas que todos nós temos sobre a síndrome com seu próprio processo de entendimento desta condição genética. Perguntando ao irmão, Tiago, qual a diferença entre ter Síndrome de Down e não ter, este responde que a única diferença são os amigos. Das dezenas de amigos de Tiago, apenas um não tem Down: Jonatas. Com franqueza nas abordagens e sagacidade nas conclusões, Jonatas Rubert e equipe tornam o complexo simples, divertem e emocionam, mas, acima de tudo, propõem de forma criativa a aproximação entre pessoas diferentes. Curta devedor do legado formal e narrativo deixado por Ilha das Flores (Jorge Furtado, 1989), cujo roteiro sublinha a ágil associação de imagens e significados que orbitam o tema principal, A diferença entre mongóis e mongolóides foi um dos grandes vencedores da Mostra Gaúcha de Curtas em 2022, tendo levado os Kikitos de melhor direção, melhor roteiro e melhor direção de arte (para Gabriela Burck). Assista aqui:




Mby’á nhendu – o som do espírito Guarani (Porto Alegre, Maquiné e Camaquã), de Gerson Karaí Gomes

O filme de Gerson Karaí Gomes sobre a cultura musical M’byá Guarani busca compreender a natureza divina das sonoridades, letras e canções que ecoam por comunidades desta etnia no Sul do Brasil. O registro do cotidiano, a fala dos entrevistados e os momentos de canto e dança dão apenas indícios do que vivem todos os dias, por exemplo, os habitantes da região de Ka’aguy Porã. Destaco indícios, pois o audiovisual enquanto linguagem mal consegue abarcar a dimensão transcendental e a gravidade de sentido que a música adquire para os indígenas. Muito mais inseridos em um contexto de vivência dos mitos, dos símbolos e dos ritos, indígenas desta etnia vivem o teor sagrado da música, capaz de equilibrar energias e renovar a comunhão entre os humanos, a terra, os deuses e os espíritos. O canto, a música, mas também a dança, todas estas linguagens movem sentidos divinos, permitem a comunicação com os deuses para a proteção do espírito dos indígenas e também da terra. Portanto, o cantar e o musicar reinstauram nos indígenas a possibilidade de harmonia entre os humanos e o mundo. Claude Levi-Strauss, Mircea Eliade e muitos outros antropólogos, mitólogos e historiadores das religiões comprovaram essa prática simbólica em seus estudos. Mby’á nhendu – o som do espírito Guarani demonstra que cantar e dançar sons e palavras divinas é o ritual do habitual para muitos M’byá Guarani. Deste ponto de vista, o documentário de Gerson Karaí Gomes se configura como antropológico, um estudo sobre o simbólico sagrado em exercício direto pela música. O filme foi escolhido como aquele com melhor trilha sonora na Mostra Gaúcha de Curtas (para Gutcha Ramil, Andressa Ferreira e Ian Gonçalves Kuaray). Assista ao trailer:




Fagulha (Porto Alegre), de Jéssica Menzel e JP Siliprandi

Animação com traço rústico e cores básicas em fundo branco, Fagulha aposta menos no grafismo e mais na livre associação de imagens, ideias, sentidos e significados para contar uma história sobre o fogo. Faísca, fagulha, fogaréu, o elemento ígneo aquece a alma de uma trama dedicada às muitas formas da chama. Do fogo-luz da criação cósmica ao fogo fátuo, o fogo tolo que surge em pântanos e descampados, Jéssica Menzel e JP Siliprandi queimam todos os cartuchos para aquecer nossa memória sobre a flâmula: o fogo está dentro da terra, flameja sobre sua superfície, arde como fogo mítico, se atualiza em fogo ritualístico, aquece e defende, gera progresso e causa destruição – seja o fogo raio que desmata, seja a arma de fogo que mata. Perto do fogo, as primeiras gerações fizeram os primeiros experimentos, os primeiros cozimentos, as primeiras alquimias e as primeiras projeções – sombras lançadas sobre as paredes de cavernas, imagens de nossos duplos visuais que o cinema viria a imitar em película milhares de anos depois, projetando luz (e não sombra) sobre uma tela em sala escura. Sem a luz do fogo, o contrário: as primeiras experiências do breu escuro, do assombroso obscuro, do frio intenso. Com o fogo, a pureza da sublimação. Como o fogo, a quentura dos corpos febris, os incêndios do sexo. Gaston Bachelard filosofou sobre as muitas imagens e sentidos da incandescência em A psicanálise do fogo, incluindo em seu ensaio a ontologia do fogo sexualizado. Fagulha não chega a incendiar corações e mentes, mas acalenta. Levou o prêmio de melhor desenho de som (para Andrez Machado) na Mostra Gaúcha de Curtas.



Sintomático (Porto Alegre), de Marina Pessato

Um dos filmes mais corajosos da Mostra Gaúcha de Curtas em 2022 não recebeu a atenção que merecia. Marina Pessato vasculha as lacunas da própria vida em suspensão pandêmica para lançar luz sobre os porões da escola onde estudou: uma instituição erguida por um nazista morador da cidade de Ibirubá. Destemida, Pessato apresenta um relato audiovisual muito pessoal e sincero para apontar para o silêncio local com relação ao passado e para denunciar os supostos efeitos da opressão herdada na vida contemporânea da cidade: o rigor escolar, os cerceamentos familiares, as interdições comunitárias, os acordos tácitos para se manter tudo como está, para se controlar as liberdades. Desde 2015, o jornalista Clóvis Messerschmidt pesquisa a história cheia de mistérios ligada à cidade e a alguns de seus moradores e visitantes. Descobriu-se uma rede de galerias, túneis e passagens subterrâneas que conectam, nos subterrâneos, a pacata localidade a nomes que teriam ligações diretas com o nazismo alemão. Reportagem da Carta Capital mostra que Ibirubá (que em tupi-guarani significa Pitangueira do Mato, árvore da região), localizada a 250 quilômetros da fronteira com a Argentina, teria servido de esconderijo para nazistas em fuga após a Queda de Berlim, em 1945. O que se sabe e o que foi encontrado no subsolo da cidade ainda é pouco (leia em Zero Hora), mas já causa calafrios. As portas deste maléfico bunker ainda precisam ser abertas. Marina Pessato se junta a esse esforço com valentia. Veja o trailer:




O abraço (Porto Alegre), de Gabriel Motta

Em uma floresta húngara, nos dias de hoje, um rapaz vai à caça de cervos com seu pai. Nitidamente desconfortável com a tradição familiar, claramente constrangido em ser colocado naquela situação, o garoto mostra-se inquieto. O que seria uma atividade de (re)conciliação entre os dois torna-se um ponto de ruptura. A presença de ambos interrompe os fluxos e desequilibra a natureza. Gabriel Motta, por meio de direção e montagem, torna palpável o mal-estar que une o jovem ao espírito da natureza. Abalado em sua harmonia, o suprassensível do mundo natural reage: quando o adolescente se encontra sozinho, o tormento provocado pelo pai transforma-se em um torpor motivado pelo ambiente. Algo parece mudar. O rapaz passa a se integrar à natureza, acalmando-se talvez como nunca antes. Frente à figura de uma anciã vestida com peles e trajes orgânicos, antigos, cerimoniais, o jovem transforma-se para sempre. Representação fílmica da Grande Mãe arquetípica, ou seja, a própria Terra, a própria natureza, este feminino materializado em filme acolhe agora mais um ser, mais um dos seus que retorna ao seio. Os entrevistados de Mby’á nhendu – o som do espírito Guarani explicam no curta de Gerson Karaí Gomes como o canto e a música os colocam em contato com deuses e espíritos da floresta – na cosmovisão animista, as coisas e os seres não humanos também têm uma essência espiritual. Para muitas das civilizações arcaicas, a própria Terra não era apenas um ser vivo, mas um espírito, uma deusa, uma Grande Mãe provedora de tudo e de todos, a quem tudo e todos retornam a todo momento e, sobretudo, no encontro final, no encerramento das jornadas e dos processos, pois a terra que sustenta a vida é a mesma que recebe os despojos. Como comentei em Upurga, é dessa terra mãe tanto fecunda quanto sombria que o habitante do antropoceno está apartado. Quando a ela retorna, o encontro pode ser selvagem, pois não sendo essa mãe arquetípica totalmente bondosa, a terra que oferece a vida também impõe grandes desafios. Em O abraço, o protagonista passa pelo maior deles. Gabriel Motta, diretor do ótimo Dois homens ao mar (2020), escreveu o belo roteiro com Guilherme Somensato e Márcio-André Sousa Haz. Há algumas semelhanças com o excelente Caçador (2014), de Taísa Ennes Marques e Rafael Duarte (que corrigiu as cores do filme de Motta). As conexões mais nítidas são o conflito geracional, o fardo da tradição masculina ilustrado pela caça (atividade heroica bem enraizada no imaginário) e a própria fotografia dirigida por Flora Fecske – vencedora da categoria na Mostra Gaúcha de Curtas do 50º Festival de Cinema de Gramado. Veja o trailer aqui.



Mora (Porto Alegre), de Sissi Betina Venturin

Um dos mais fluídos, poéticos e genuínos filmes gaúchos dos últimos tempos, Mora flutua sobre todos os outros na Mostra Gaúcha de Curtas de Gramado 2022. Mora paira acima, atingível somente pelos sentidos e sensações. Mora navega nas águas do feminino, na proa da palavra e na vertigem da imagem. Após o encontro amoroso de duas mulheres em uma praia, uma delas volta para a cidade para viver, no claustro, a solidão da distância, enquanto a outra segue o gozo da paixão entre ondas, espumas, plantas e flores. Já no desterro urbano, a reclusão no apartamento acentua o transe da memória, as brumas do sonho e os devaneios despertos. Um molho de chaves para abrir os caminhos da felicidade contrasta com a imersão da personagem em águas claras, rasas e inocentes, mas encharcadas de dor. No âmbito da filosofia da imagem, Gaston Bachelard estudou a produção simbólico-poética de muitos autores da literatura para explicar, em A água e os sonhos, que a água é “[...] o elemento melancólico por excelência (...), infelicidade dissolvida (...), elemento sofredor”, afinal, “[...] a imagem das lágrimas acudirá mil vezes ao pensamento para explicar a tristeza das águas” (Martins Fontes, 2013, p. 94). O autor conclui que a imaginação humana irrigada pela água instaura o Complexo de Ofélia*, pelo qual poetas e sonhadores ligam a figura feminina aflita, deprimida e potencialmente suicida às águas calmas e tenebrosas de lagos, ao fluxo das correntes de rios e riachos, às vestes encharcadas e à cabeleira flutuante nas ondas. Por vezes, a imagem da mulher que morre nas águas pode sugerir apaziguamento com a morte, descanso do corpo e repouso da alma, sobretudo após grande sofrimento em vida. As personagens de Mora não chegam a tanta dor, mas sofrem a saudade apaixonada em contato com a água seja na praia, seja na cidade, submergindo no elemento aquoso para lavar coração, sedas e cabelos com muita melancolia. Mora é um filme sensível, uma declaração de amor em som e imagem e um avanço com relação ao curta experimental A Fonte, lançado pela diretora e atriz Sissi Betina Venturin em 2020. Agora, em parceria com as roteiristas Ana Girardello e Kalisy Cabeda, Sissi traz à tona uma pérola lapidada pela tocante fotografia de Rodrigo Pannacci e pela montagem delicada de Girardello. Mora não recebeu prêmios em Gramado. Premiado foi o público com tanta autenticidade.


* Ofélia é a personagem criada por William Shakespeare, em Hamlet, que enlouquece com a morte do pai e pela falta de amor do príncipe da Dinamarca. Ofélia acaba tirando a própria vida em um riacho, afogando-se entre pequenas ondas e perfumadas flores. A cena inspirou pintores dos séculos XIX, XX e XXI e cenas em uma grande quantidade de filmes, como Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock. Para saber mais sobre o Complexo de Ofélia em Um corpo que cai veja o capítulo 5.2 da minha tese Mitocrítica Fílmica: para pensar o cinema no horizonte mítico.




> Não pude ver alguns dos curtas-metragens gaúchos em competição devido às minhas atividades como presidente da Accirs no 50º Festival de Cinema de Gramado. Também por isso não pude integrar o Júri da Accirs para a Mostra de Curtas Gaúchos do festival, mas o resultado da escolha você confere aqui.



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