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danilofantinel

SEM DESTINO

Atualizado: 27 de dez. de 2020

No final da década de 1960, havia um descompasso comportamental e ideológico entre jovens hippies, protagonistas da contracultura, e os personagens de filmes ultrapassados, produzidos por uma Hollywood antiquada. Dennis Hopper, diretor de Sem Destino, diz em livro de Peter Biskind* que naquela época ninguém se via retratado pelo cinema norte-americano. Segundo o artista, o público queimava fumo e tomava LSD em love-ins que ainda exibiam longas com Doris Day e Rock Hudson. Doidão dos mais malucos da Califórnia, Hopper convenceu a nova produtora BBS a bancar o argumento do seu filme que não tinha roteiro, mas sim produtor: Peter Fonda.

Enfrentando a poderosa máquina audiovisual do Golden West como somente outsiders poderiam fazer, Hopper e Fonda lançaram o filme que botaria abaixo todo um antigo sistema de estúdios dominado por produtores pouco criativos. Na Nova Hollywood, a figura do cineasta se destaca e o cinema de autor se estabelece, dando atenção a temas do cotidiano e aos anseios das novas gerações, algo visto apenas nos movimentos europeus de vanguarda, como o Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. A autoria cinematográfica, então, invade Hollywood como expressão de contracultura, como aposta de inconformados – o mesmo tipo de atitude que move os personagens de Sem Destino.


No longa, dois amigos motociclistas muito diferentes entre si, o leather man Wyatt (Fonda) e o riponga roots Billy (Hopper), traficam cocaína em Los Angeles, em 1969, para fazer dinheiro fácil e cair na estrada em direção ao carnavalesco Mardi Gras de New Orleans. No caminho até a base rítmica do rock’n’roll, onde todos os estilos da música popular norte-americana deságuam em um único Delta, o do Mississippi, a dupla encontra diversos pedaços de um país culturalmente fragmentado. De fato, os Estados Unidos são muitas nações dentro de um único território, assim como é o Brasil. Porém, no auge dos anos 1960 deste Sem Destino, as múltiplas diferenças acabam sendo polarizadas entre o idealismo hippie, comunitário e libertário, e seu exato oposto, expresso por segmentos retrógrados, obscuros, segregacionistas, que se alastram pela chamada América profunda.


Esta dualidade sociocultural marca o percurso da dupla da Califórnia à Louisiana. Wyatt, piloto de uma Harley Davidson pintada com as cores da bandeira dos Estados Unidos (a mesma que ilustra sua jaqueta de couro e seu capacete), carrega no tanque de gasolina todo o dinheiro obtido com o tráfico. Ele é o próprio Capitão América sentado em uma montanha de dólares sujos. Contraditoriamente, é um sujeito idealista, sonhador de uma sociedade mais humana, justa e compartilhada. Easy going, Wyatt poderia viver na comunidade hippie recém descoberta pelos dois, mas é convencido a partir por Billy, bronco lunático cujo nome inspirado em Billy the Kid dá o tom de seu tipo inquieto e angustiado.


Presos no meio do caminho por invadir uma parada cívica em algum lugar desimportante, os dois conhecem George (Jack Nicholson), um advogado de porta de cadeia que, curiosamente, está do lado de dentro da cela, ao lado deles. Amizade feita, George liberta o trio, que segue em viagem pela paisagem árida até a próxima localidade: um fim de mundo onde os três são duramente humilhados e ameaçados por moradores e pelo xerife local devido ao estilo pouco usual de suas roupas, cabelos e comportamento. O resultado imediato deste embate marcado pela intolerância é terrível, porém as consequências futuras são ainda piores.


Comentando o assédio de que foram vítimas, George fala sobre uma sociedade igualitária, utópica e respeitosa, onde todos produzem juntos apenas o necessário para sobreviver – algo parecido com a comunidade hippie que Wyatt e Billy haviam conhecido pouco antes, e também semelhante às tribos autossuficientes desvinculadas de um Estado constituído, amplamente estudadas por Pierre Clastres** entre as décadas de 1960 e 1970. Porém, o que vemos nesta representação fílmica de cidade selvagem é exatamente o contrário do pacifismo flower power contracultural. Nela, testemunhamos o triunfo do grotesco, da ignorância e da violência perpetrada por figuras que se colocam à margem do Estado. O filme se aproxima do pensamento de Clastres: sociedades tidas pelo mundo civilizado como primitivas, sem Estado, costumam ser socialmente horizontalizadas e bastante evoluídas, ao passo que a emergência do Estado institucional determina o aparecimento de classes e desníveis sociais importantes, não sendo garantia de ordem e respeito mútuo.


Com a viagem dos protagonistas em um momento crítico, Wyatt reclama para Billy dizendo que “nós estragamos tudo”. Sem uma explicação sobre do que se trata exatamente (se algo ligado ao filme ou ao momento geopolítico do mundo), a fala poderia ser lida como antecipação sensível da falência utópica dos anos 1960. Ao final da década, enquanto o movimento hippie morria, havia uma escalada da Guerra Fria, o recrudescimento da Guerra do Vietnã, e o avanço paralelo do capitalismo corporativista e de governos autoritários que dominariam boa parte dos anos 1970. Assim, Sem Destino não só captura o espírito do tempo em que foi feito como vislumbra um futuro pouco promissor – algo também representado pela bad trip de ácido experimentada por Wyatt e Billy em New Orleans, prenúncio da própria queda dos protagonistas.

Sabe-se que o set do filme de Hopper foi infernal, muito por conta de seu comportamento paranóico, anárquico e aditivado por drogas, porém há dúvidas sobre a autoria deste roteiro visionário, reivindicada exclusivamente por Terry Southern. Por outro lado, é fato que o corte original de cerca de quatro horas assinado por Hopper foi reduzido pela BBS para uma hora e meia, o que deixou o cineasta contrariado. Porém, a remontagem teria dado muito mais coesão a uma história originalmente sem sentido. O resultado foi um filme de sucesso que custou US$ 501 mil, rendeu US$ 19,1 milhões e levou o prêmio de diretor estreante em Cannes em 1969. Acima de tudo, Sem Destino abriu espaço para uma geração de cineastas autores transitarem por Hollywood com mais liberdade, incluindo neste grupo Brian De Palma, John Cassavetes, Peter Bogdanovich, Francis Ford Coppola, Steven Spielberg, Martin Scorsese, George Lucas, Terrence Malick, William Friedkin e muitos outros.


* “Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood” (Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2009).


** “A sociedade contra o Estado, Investigações de Antropologia Política” (Edições Afrontamento, Porto, 1975).


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