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OBSERVATÓRIO: 51º FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO


Foto: Diego Vara/Agência Pressphoto.


O Festival de Cinema de Gramado foi, mais uma vez, movido pela diversidade temática, estética, técnica e narrativa do cinema nacional. Nesta 51ª edição, curadoria e comissões de seleção escolheram filmes de variados tipos, cores, texturas, visualidades, línguas, etnias e territórios. Entre o corpo de jurados, houve a valorização e a premiação do bom cinema, das boas histórias, do estético-narrativo, mas também do ousado, do diferente, da ruptura multicultural, genuinamente brasileira.


Mussum, O Filmis. Foto: Divulgação.


O Brasil se viu na tela de Gramado e no palco do Palácio dos Festivais em uma pluralidade de cores, corpos, origens, discursos e imagens. Houve saber yanomami, canto iorubá, ode à macumba, presença dos nordestes, ares do Sul, filme do Tocantins, força de Rondônia. A alma carioca saiu premiada com a emocionante comédia Mussum, O Filmis, cujas equipes de produção e elenco, compostas majoritariamente por pessoas negras, estiveram em peso no festival comemorando cada um dos seis Kikitos conquistados. O longa do diretor estreante Silvio Guindane obteve as estatuetas de melhor filme, ator (Ailton Graça, unânime), atriz coadjuvante (Neusa Borges), ator coadjuvante (Yuri Marçal), trilha musical e melhor filme pelo júri popular.

Léa Garcia e Laura Cardoso durante o 51º Festival de Cinema de Gramado. Foto: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto.


Neste ano, as mulheres tiveram grande destaque, a começar pelas homenageadas Laura Cardoso (Troféu Oscarito), Lucy Barreto (Troféu Eduardo Abelin), Ingrid Guimarães (Troféu Cidade de Gramado) e Alice Braga (Kikito de Cristal). A atriz Lea Garcia, dama do cinema, do teatro e da televisão, vencedora de quatro Kikitos por Filhas do Vento, Hoje tem Ragu e Acalanto, também receberia um Troféu Oscarito em Gramado. Seu falecimento no 15 de agosto, dia em que seria homenageada, entristeceu a serra gaúcha. Seu nome foi devidamente saudado quando seu filho, Marcelo, recebeu a homenagem.


Além das homenagens a mulheres do cinema, temáticas envolvendo causas femininas moveram filmes do festival, sobretudo a violência doméstica contra mulheres (ou meninas). É o caso do longa-metragem Angela, sobre o relacionamento abusivo entre Angela Diniz, vítima de feminicídio em 1976, e Raul “Doca” Street, o assassino que alegou “legítima defesa da honra” para cometer o crime – tese tornada inconstitucional pelo STF em 1º de agosto de 2023).

Tia Virgínia. Foto: Divulgação.


Sob certos aspectos, Tia Virgínia, escolhido o melhor filme do festival segundo o Júri da Crítica, também aborda desequilíbrios e abusos no âmbito familiar. No filme de Fábio Meira (também premiado pelo Júri da Crítica no 45º Festival de Cinema de Gramado, em 2017 por As duas Irenes), há sintomas de opressão e domínio entre a protagonista e suas irmãs, levando a traições, revelações e uma situação insustentável. A intrigante história de uma mulher solteira obrigada pela família a cuidar da mãe catatônica conquistou os Kikitos de melhor roteiro, para Fábio Meira, e melhor atriz, para Vera Holtz, brilhante ao lado de um quarteto iluminado: Arlete Salles, Louise Cardoso, Antônio Pitanga e Vera Valdez, que recebeu menção honrosa do júri ao interpretar a matriarca silenciosa que tudo vê. A comédia dramática também venceu nas categorias de direção de arte e desenho de som.


A violência de gênero também surgiu em Mais pesado é o céu, de Petrus Cariry, sobre uma jovem mulher que, inesperadamente, adota um bebê abandonado em um açude no interior do Ceará. Sem sustento, vagando com a criança pelas estradas, Teresa (Ana Luiza Rios) precisa se prostituir para obter dinheiro e alimentos. Poético e contundente, o longa levou quatro Kikitos, incluindo três dos mais importantes: melhor direção e melhor fotografia para Petrus, melhor montagem para ele em parceria com Firmino Holanda, além o prêmio especial do júri para a atriz Ana Luiza Rios – que desenvolve um personagem muito rico, indo do frágil desamparo à ruptura violenta em um arco dramático memorável.

Mais pesado é o céu. Foto: Divulgação.


Outros filmes abordaram as dores de ser mulher e o inaceitável abuso infantil. Porém, arriscando em seu formato e nas soluções técnicas e narrativas que apresentaram, obtiveram resultados variáveis não reconhecidos na premiação final. Alternando recursos do cinema clássico com traços do gênero thriller e intervenções do audiovisual contemporâneo, como a câmera de celular gravando no verticalismo extremo comum às mídias sociais, o drama de suspense Família feliz aborda um misterioso núcleo familiar (Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini) em que nada é o que parece. Encenado com rigor formal, apostando em um suspense que não chega a se materializar de fato, e apresentando um aspecto bastante comercial, sendo palatável ao grande público, mas insuficiente ao cinéfilo, o longa de José Eduardo Belmonte [de Alemão (2014) e O pastor e o guerrilheiro (2023)] não convenceu o júri. Algo semelhante ocorreu com o filme Angela, de Hugo Prata, que apesar da excelente reconstituição de época, das atuações dedicadas e da trama verossímil, tão sensual e provocativa quanto tensa, acabou não contemplado pelos jurados.

O barulho da noite. Foto: Divulgação


Igualmente conectado à violência doméstica, O Barulho da noite localiza as agruras da vida familiar no interior isolado do Tocantins. A produção assinada por Eva Pereira foi uma das mais pesadas entre aquelas exibidas no festival, deixando o clima denso e um gosto amargo após a sessão, sobretudo pelas sombras que o filme joga sobre o público ao longo da exibição. A história de um marido religioso (Marcos Palmeira) dedicado à mulher (Emanuelle Araújo) e às filhas, mas que acaba sendo traído pela esposa, a qual virá a se relacionar com um homem mais jovem e muito possessivo, agressivo e violento, causou comoção entre a plateia, especialmente pelo destino conferido às meninas. Entretanto, bebendo da fonte do naturalismo cinematográfico (que flerta com realidades periféricas em crise civilizatória; que explora excessivamente o elemento trágico, a crueldade e o sensacionalismo; e cujo determinismo observa personagens como resultantes exclusivamente do meio em que vivem), O Barulho da noite apresenta pontos nebulosos, personagens dúbios (pois mal esclarecidos) e opções narrativas não devidamente explicadas nem adequadamente sugeridas, causando dúvidas e confusões entre os espectadores.


Documentários e longas gaúchos

Hamlet. Foto: Divulgação.


Com uma programação para chamar de sua, os documentários tiveram seu momento de exposição tanto em sua mostra nacional quanto na mostra de longas-metragens gaúchos (eram quatro docs entre os cinco filmes). O formato chegou ao ápice com Anhangabaú, de Lufe Bollini, sobre os espaços simbólicos e a luta por territórios em São Paulo, e com o longa híbrido Hamlet, de Zeca Brito, que tem no cenário das ocupações das escolas secundaristas por estudantes da rede pública de Porto Alegre, em 2016, o cenário ideal para a construção de um personagem cidadão, uma pessoa fictícia inspirada pelo vigor da arte e pelo pulso das ruas, um líder estudantil de filme em vias de se tornar uma liderança política na vida. Hamlet levou os Kikitos de melhor longa da mostra gaúcha, melhor direção, ator (Fredericco Restori), fotografia (um belo PB, cheio de contraste e nitidez, com muito movimento, angulação, energia, intervenção) e montagem (ágil, apta a dosar imaginação e documento, estética e registro, ficção e realidade).

A ficção O Acidente, de Bruno Carboni, única entre os docs da mostra gaúcha, obteve a estatueta de melhor roteiro (para Bruno e Marcelo Ilha Bordin), direção de arte (Richard Tavares) e atriz (Carol Martins). Já Sobreviventes do Pampa, de Rogério Rodrigues, levou o cobiçado prêmio do júri popular.


De forma geral, longas documentais fundamentados em depoimento, celebratórios de determinado tema ou pessoa, autoelogiosos ou autocentrados, por vezes sem transcender o recorte inicial da proposta, ou sem contextualizar um cenário maior que envolve outros agentes na construção contínua do todo, ou que trataram seus temas com distanciamento tamanho o respeito e a admiração por aquilo, esses acabaram não lembrados na premiação. De uma forma ou de outra, isso ocorreu com Luis Fernando Verissimo – O Filme, de Luzimar Stricher, Roberto Farias – Memórias de um cineasta, de Marise Farias, Glênio, de Luiz Alberto Cassol, e Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre, de Boca Migotto. Filmes mais tradicionais em seu formato, eles seguem a linha do talking heads em perspectiva unidirecional (que empreende um discurso sem propor necessariamente uma efetiva troca sensível e comunicativa entre filme e espectador). Fundamentados na palavra falada, no depoimento, são filmes que falam muito sobre um mundo quando poderiam mostrar mais esse mesmo mundo. Obras que retêm o entrevistado para si, quando poderiam libertá-lo no jogo do fazer fílmico.


Centenário de minha bisa. Foto: Divulgação.


Entre os novos realizadores, surgem outras opções documentarizantes, aptas a problematizar questões e demandas em uma perspectiva contemporânea. São filmes que se entregam à temática por inteiro, que se contaminam por ela, que se conectam com o documentado de forma mais livre, intensa e complexa. Apostam na fluidez, no hibridismo, nas zonas de confluência entre documentar e ser documentado, entre fazer cinema e ser objeto do cinema – o que muitas vezes envolve uma ação coletiva de realização, uma troca de papéis, um risco estético e conceitual, uma aposta no inusitado, no acaso, no inesperado e na experiência do acontecimento. Vimos isso nos docs em longa-metragem como Céu Aberto, de Elisa Pessoa (elaborado em parceria direta com a jovem Andrielle, que capta imagens de seu cotidiano no interior gaúcho em tempos de pandemia; Kikitos de melhor desenho de som e melhor trilha musical) e nos docs em curta Eu Tibano, de Diego Tafarel e Zé Corrêa, Fiar o vento, de Mari Moraga, Meu nome é Leco, de Diana Mesquita e Marina Falkembach, e Centenário de minha bisa, de Cristyelen Ambrozio (escolhido o melhor filme pelo Júri da Accis na mostra gaúcha de curtas, e o primeiro prêmio em grande festival de uma estudante do curso de produção audiovisual do Campus Alvorada do Instituto Federal do Rio Grande do Sul - IFRS).


O Acidente. Foto: Divulgação.


Curtas-metragens


Para rupturas de linguagem, inovações no tratamento das temáticas, para novos fazeres cinematográficos, para novos saberes em som e imagem, para o entendimento do audiovisual como algo maior e mais livre do que a narrativa tradicional que submete a imagem à história e ao verbo, o caminho parece ser sempre o mesmo: o curta-metragem. Seria infrutífero mapear todo o universo que se apresentou em uma semana de festival, mas deve-se lembrar de alguns destaques.


Filmes realizados por indígenas obtiveram Kikitos na mostra de curtas. O de trilha musical foi para Mano Teko e Aquahertz, por Yãmî-Yah-Pá, filme de Vladimir Seixas também celebrado com o Prêmio Canal Brasil. Já a melhor fotografia foi para Morzaniel Ɨramari, por Mãri-Hi – A árvore do sonho, produção que também levou o Prêmio Especial do Júri. Em 2010, Morzaniel chamou a atenção com Xapiripë Yanopë - Casa dos Espíritos, feito em parceria com Dário Kopenawa Yanomami, e cujas imagens se assemelham com sequencias de Mãri-Hi.


Casa de bonecas. Foto: Divulgação.


Entre os curtas, a direção de arte ficou com Felipe Spooka e Jacksciene Guedes, pelo estonteante Casa de bonecas, uma obra muito inventiva, de gênero fluido, unindo o drama sexy-existencial de uma família de amigos LGBTQIA+ a uma trama mezzo sci-fi com requintes fantásticos na qual a narrativa de uma história importa menos do que a sensorialidade da experiência. Filme provocativo desde o primeiro segundo, o início de Casa de bonecas tem impacto semelhante à cena de abertura de Animais Noturnos (2016), de Tom Ford.


Se alguns inovam na imagem, outros rompem com a língua falada e com a linguagem audiovisual para criar algo novo como Camaco, de Breno Alvarenga, sobre o dialeto inventado pelos moradores de Itabira, na Região Central de Minas Gerais, nos primórdios da mineração, quando empresas inglesas ainda operavam na região. Os habitantes criaram o dialeto (que altera as sílabas das palavras) para fazer frente ao inglês utilizado pelos patrões. Era uma nova língua como forma de resistência e subversão das questões coloniais. Camaco conquistou os Kikitos de melhor montagem (Luiza Garcia) e de melhor curta segundo o Júri da Crítica.

Ela mora logo ali. Foto: Divulgação.


No 51º Festival de Cinema de Gramado também houve protagonismo de artistas e realizadores negros e negras na mostra de curtas-metragens nacionais. Fabiano Barros e Rafael Rogante obtiveram o Kikito de melhor roteiro pelo emocionante Ela mora logo ali, sobre uma mulher preta trabalhadora e analfabeta, mãe de um garoto especial que só sossega na cama ao ouvir histórias contadas por ela. A personagem materna interpretada por Agrael de Jesus, vencedora da estatueta de melhor atriz de curtas, passa a contar a ele a história de Dom Quixote, que havia escutado de uma jovem em um ônibus. É com o estímulo da escuta da literatura clássica que a protagonista percebe que ela mesma pode criar histórias. Ela mora logo ali venceu o Kikito de melhor filme pelo Júri Popular.


Já o prêmio de melhor ator foi para Phillipe Coutinho, por Sabão Líquido, uma inteligente trama tensionada por questões de imigração ilegal e de trabalho análogo à escravidão. A cineasta Mariana Jaspe venceu o Kikito de melhor direção pelo maduro trabalho realizado em Deixa, com Zezé Motta vigorosa vivendo uma mulher em seu último dia de liberdade antes de seu marido deixar a prisão. O melhor filme ficou com o indomável Remendo, de Roger Ghil, uma história fragmentada sobre um homem com um peso imenso no peito vivendo sempre às turras com seus loucos amigos.


Entre os filmes não contemplados pelo júri, há dois títulos poético-ensaísticos bastante autorais:


Cama Vazia, uma fotomontagem teórico-crítica de Fábio Rogério e de Jean-Claude Bernardet, o teórico, crítico e pesquisador de cinema que atua/aparece em diversos filmes, incluindo Hamlet, de Zeca Brito, vencedor da mostra de longas gaúchos neste ano. Neste libelo humanista, Jean-Claude explica e Fábio nos faz ver que, no fim de nossas vidas, um sombrio aparato capitalista tecno-científico precisa manter nossa longevidade a todo custo, até a última gota de sangue, até o último fio de cabelo de nossa sobrevida caquética, para assim poder se expandir e lucrar.


Pássaro Memória, de Leonardo Martinelli (Fantasma Neon, 2021), é um quase musical felliniano lindissimamente fotografado em um Rio de Janeiro muito calmo e poético, quase interiorano, quase parado no tempo. O tempo do curta é mesmo uma espécie de eterno presente em que Memória vou para não voltar. Memória se foi deixando tudo em suspenso. Esvoaçante, a atriz Ayla Gabriela nos faz crer que a vida é leve e que somente dançar faz sentido.




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