Após o sucesso de Matrix (1999), as irmãs Lilly e Lana Wachowski partiram para as sequências que completam a trilogia. Reloaded e Revolutions (2003) foram rodados simultaneamente e lançados em 2003 com espaço de poucos meses entre eles. Com as premissas e o universo da saga já detalhados no primeiro longa, Matrix Reloaded dá continuidade à guerra entre máquinas e humanos, aprofundando as problematizações já intrincadas do primeiro filme e exigindo mais atenção do público. Mas se a trama ganha consistência, isso não se traduz necessariamente em qualidade narrativa. Se Matrix é passível de uma leitura política, apesar das diversas referências à cultura pop e a questões abstratas que nele se delineiam, Reloaded aprofunda-se ainda mais nestes parâmetros míticos, religiosos e filosóficos, conferindo ao enredo tanto teores que amplificam o perfil messiânico do personagem principal quanto elementos que provocam dúvidas quanto a isso.
A ponte que o filme estabelece com a alegoria da caverna de Platão, na qual o filósofo grego elabora a libertação do homem pelo conhecimento, que passa da escuridão das percepções distorcidas à iluminação da visão clarificada sobre o mundo, certamente é mantida. Porém, apesar da tomada de consciência de Neo (Keanu Reeves) com relação à realidade artificial em que vivia, o protagonista passa a se questionar sobre seu propósito de predestinado. Ressuscitado ao final do primeiro longa tal como Jesus, os anseios de Neo configuram mais uma crise de autoconfiança em sua longa jornada, que será encerrada apenas em Matrix Revolutions. Nesta etapa da trilogia, o trajeto heroico do personagem traça um labirinto em constante expansão. Para o espectador percorrê-lo o ideal seria ter a ajuda do Fio de Ariadne, tamanho o número de entroncamentos e simbologias presentes.
Em Reloaded, angustiado pelo sonho recorrente em que vê Trinity (Carrie-Anne Moss) correndo risco de vida durante um combate exibido logo no início do filme, Neo, Morpheus (Laurence Fishburne) e a tripulação da nave Nabuconodosor seguem para Zion. A última cidade humana está a ponto de ser invadida e destruída por 250 mil robôs sentinelas. Há um conselho definindo a defesa do local, bem como uma divisão entre líderes da resistência a respeito do papel profético de Neo. Entretanto, Morpheus insiste que Neo é o único capaz de cumprir a profecia pela qual o escolhido reprogramará Matrix, encerrando a existência inconsciente de humanos escravizados. Para Morpheus, apoiar Neo na destruição do sistema matricial é o único propósito de vida dos rebeldes. Os simbolismos metafísicos, religiosos, filosóficos e históricos, já referidos no primeiro filme, tornam-se agora muito claros – e foram inseridos por Lilly e Lana Wachowski de forma pontual e detalhada. Viajando com a Nabuconodosor, em referência ao rei que construiu os bucólicos Jardins Suspensos da Babilônia, o grupo chega a Zion, (Sião em português), nome de uma antiga fortaleza erguida próxima a atual Jerusalém e tomada por Davi, o mais importante rei de Israel, que teria vivido entre 1040 a.C. e 970 a.C.
Zion é um das principais dimensões míticas de toda trilogia Matrix. Encontra ressonância em muitas vertentes espirituais, causando uma identificação imediata entre diversos públicos. Após a morte do rei Davi, o termo Sião passou a se referir ao monte de Jerusalém onde se encontrava o Templo de Salomão. Ainda hoje, Sião simboliza a própria cidade sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos. Para algumas ramificações cristãs, Sião será a última cidade possível de se viver após o Armagedom. Já conforme a cabala, Sião é o ponto espiritual de onde a realidade emerge, enquanto para os rastafaris o termo representa a terra prometida. E para testemunhas de Jeová, Sião significa o domínio espiritual onde somente os escolhidos por Deus viverão após a morte.
Apesar de tantas doutrinas que elevam Sião a uma espécie de paraíso celeste, prometido e quase inatingível, Lana e Lilly Wachowski invertem valores na trilogia em que a Terra foi destruída pelas máquinas. Projetam Zion em um local subterrâneo, que remete a uma imagem simbólica de mundo inferior, quase infernal, mas ainda assim agregador de todos humanos despertos de Matrix ou já nascidos fora do sistema opressor das máquinas. Zion não é uma terra celestial mítica prometida para fiéis post-mortem, mas a cidade real onde a revolução é arquitetada e de onde homens (redivivos) planejam sua volta à superfície – a retomada do próprio mundo terreno.
É na mundana Zion que Neo é recebido e adorado por uma multidão miscigenada, representante da própria humanidade. Como um messias, ganha presentes de agradecimento pela sua presença, votos de confiança em sua predestinação e pedidos de proteção por sua divindade. Mas o escolhido passa pouco tempo na cidade dos homens. Após um discurso revolucionário de Morpheus, próximo à Teologia da Libertação, no altar de uma caverna semelhante a uma catedral gótica – e depois de uma rave dionisíaca, ritualística, pré-combate –, Neo e equipe partem para cumprir a profecia. De volta a Matrix, Neo reencontra o Oráculo (Gloria Foster), sumido desde que ambos se conheceram no primeiro longa, na casa onde Neo leu a inscrição “Conhece-te a ti mesmo”, o aforismo grego inscrito originalmente no Templo de Apolo, em Delfos, na Grécia. Naquele primeiro encontro, quando o Oráculo cuidava de crianças que também poderiam ser candidatas a predestinados – em uma cena que lembra muito as crianças telepatas de Akira (1988), o clássico do anime japonês – Neo já era estimulado a tomar consciência de seu papel no mundo e a tomar suas decisões sozinho.
Em Reloaded, essa necessidade (redundante!) é amplificada. Porém, em uma conversa mais reveladora, Neo descobre novidades sobre o Oráculo, definido então como um “programa hacker” que se desvinculou da Matrix, desafiando a programação central do mundo artificial e também programas de controle como o agente Smith e o Arquiteto. Este novo personagem, espécie de web master do sistema, tem o passe para o mainframe de Matrix – o lócus tecnológico definitivo onde o herói poderá reprogramar toda a matriz virtual, derrotando-a e finalmente cumprindo a profecia. Para seguir seu destino, o Oráculo orienta Neo a salvar o Chaveiro, figura simpática aos rebeldes que mostrará o caminho até o Arquiteto. Porém, o Chaveiro é refém de Merovíngio, um malware (software maléfico) francês interessando apenas em seus próprios domínios virtuais. Na linha de referências da trilogia, "merovíngio" relaciona-se à dinastia de reis francos fundada por Meroveu, chefe lendário cuja dinastia governou a Gália (atual França) do ano 500 a 751. Não à toa, norte-americanos focalizam em um francês a figura do vilão prepotente.
Em seu percurso até o Arquiteto, com quem tem um diálogo denso pelo qual ficamos sabendo que esta é a sexta versão de Matrix (o que exigiria um novo texto apenas para dissecar esta informação), Neo enfrenta muitos desafios. Entre eles, a volta do agente Smith (Hugo Weaving) que, assim como o Oráculo, também se desvinculou de Matrix. Inspirando-se na própria espécie humana que tanto odeia, Smith multiplicou-se como um vírus, dando a Weaving mais espaço para sua brilhante atuação. Smith é o exato oposto de Neo, mas um oposto complementar, como o próprio agente comenta em Reloaded e como o Oráculo explica em Revolutions, durante uma cena em que seus brincos exibem o símbolo de yin-yang, o conceito básico do taoismo que aponta para a dualidade de tudo o que existe no universo. Além de lidar com Smith, Neo é obrigado a beijar Perséfone (Monica Bellucci), a bela mulher de Merovíngio cujo nome remete à deusa grega que despertou o desejo de deuses como Hermes, Apolo, Dionísio e Hades, o deus do mundo inferior que a raptou e a desposou, tornando-a sua rainha. No filme, o beijo forçado é curioso. Merovíngio, dono do clube noturno Hell (“inferno” em inglês, que poderia ser entendido como uma espécie de paralelo ao mundo inferior), trai a esposa constantemente. Para se vingar dele e sentir-se amada novamente, a sedutora Perséfone exige o beijo de Neo em troca do Chaveiro, traindo Merovíngio. Mesmo contrariado pelo amor a Trinity, Neo aceita beijar Perséfone para salvar o Chaveiro e assim chegar ao Arquiteto.
No fundo, Neo não quer magoar Trinity, pois além do amor que sente por ela teme perdê-la durante a guerra contra Matrix, como vinha prevendo em seu sonho recorrente. De fato, Trinity acaba baleada em combate e, para salvá-la, Neo opera um milagre digno de Jesus, ressuscitando-a – e invertendo a cena do primeiro filme na qual Trinity ressuscita Neo com um beijo, conforme a previsão do Oráculo, e reproduzindo (novamente com inversão de papeis) a clássica cena de A Bela Adormecida (1959). No entanto, para salvar Trinity, Neo escolhe não se plugar no sistema central de Matrix de forma a reiniciar o sistema, o que encerraria a guerra contra as máquinas de imediato. O desfecho fica para Revolutions. Mesmo assim, a atitude levanta dúvidas sobre a real natureza de Neo e suas motivações, questionamentos reforçados ao final do último filme – que como se sabe, deixa em aberto se Neo venceu a guerra ou se ele apenas seguiu um caminho programado por Matrix.
Apesar da incógnita sobre o herói, é certo que a trilogia Matrix é rica em muitas outras referências a mitos e lendas, a regimes simbólicos e filosóficos, ao saber científico, à cultura pop e ao conhecimento popular. Vai do significado ancestral de nomes de naves de combate como Osíris, Ícaro e Gnosis a detalhes menores, mas bem posicionados, como quando Neo questiona se o Oráculo é realmente confiável – e que, como resposta, lhe oferece uma bala (vermelha, como a cor da pílula do filme de 1999). E você, aceitaria balas de estranhos? Em se tratando de Matrix Reloaded, a sugestão é aceitar todas as balas, doces e quitutes possíveis, degustando cada referência como se fosse um manjar dos deuses. Talvez essa seja a melhor forma de saborear um enredo tão intrincado.
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