De todas as necessidades do homem, comer é das mais incontroláveis. Pulsão de autoconservação por motivos óbvios, o reflexo dominante que leva qualquer pessoa a alimentar-se também pode provocar comportamentos drásticos em situações extremas – novidade alguma para quem já sofreu ou sofre com a privação alimentar, como vítimas de guerra, por exemplo.
É justamente a falta de comida o problema que atinge os moradores de um prédio de uma cidade francesa não revelada durante um pós-guerra não anunciado em Delicatessen. A história do senhorio que aluga apartamentos e que trabalha como açougueiro fornecendo carne em um momento de absoluta escassez, porém, não se configura drama, suspense ou terror, mas se coloca como uma interessante comédia de humor macabro.
Já de início o filme faz revelações sobre a origem da proteína, que não vem de muito longe. Na verdade, a fonte do alimento está muito perto dos moradores. O intuito do roteiro, então, não é fazer o público desvendar o caso, mas sim instaurar de forma tragicômica algumas motivações e condutas controversas que podem levar sujeitos insuspeitos a saciar impulsos humanos irreprimíveis.
Se por um lado a história da humanidade prova que muitos indivíduos não veem limites para aplacar a fome, o imaginário antropológico resultante da confluência entre as coerções oriundas do meio social e as pulsões do homem estimula imagens simbólicas de inversão ligadas ao gesto alimentar, remetendo por sua vez a tudo que é úmido e quente, ao que está nas entranhas e nas vísceras, ao que é profundo e misterioso, a tudo que mistura e elabora, a tudo que é próprio e torna-se pútrido.
A putrefação, os engolimentos condenáveis, os interiores misteriosos e as umidades viscerais não surgem em tela de forma direta, mas estão subentendidos na moral questionável dos personagens e na paleta de cores adotada pelo filme. O vermelho símbolo da carne nova, ideal para o consumo, que emana tanto o sangue dos tecidos biológicos quanto a paixão do serviçal Louison (Dominique Pinon) pela musicista Julie (Marie-Laure Dougnac), se contrapõe não apenas ao verde dos mofos e dos podres dos moradores locais, mas também ao amarelo febril do desequilibrado açougueiro Clapet (Jean-Claude Dreyfus), provedor dos banquetes.
Cores e luzes singulares são elementos narrativos importantes da estética inaugura por Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet em Delicatessen, traços que se tornarão recorrentes em filmes como Ladrão de Sonhos (1995), Alien: A Ressurreição (1997), O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) e até mesmo no recente Uma Viagem Extraordinária (2013). Juntam-se a eles figuras caricatas, cenografia teatral, visual retrô e um mundo analógico feito de molas, canos, fios, fusíveis, equipamentos antigos e engenhocas malucas que tanto interligam os habitantes do prédio quanto reforçam a sintonia de seu principal desejo: matar a fome com o que estiver mais próximo.
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